O ensaio como estratégia reflexiva

Pedro de Santi

“Pintando-me para os outros, pintei a minha alma com cores mais nítidas do que a apresentava primitivamente. Fez-me o meu livro, mais do que eu o fiz; e autor e livro constituem um todo; é estudo de mim mesmo e parte integrante de minha vida”. Montaigne.

Decidi preparar uma breve palestra de apresentação, por ocasião do lançamento do meu livro Eu e o outro na cidade (Editora Zagodoni). Ele ocorreu junto com um evento com o mesmo nome, com a apresentação de textos e trabalhos de professores e alunos de vários cursos da ESPM.

Na palestra, além de falar das questões de identidade/alteridade, tolerância/intolerância, que deram origem ao livro, decidi falar sobre o estilo que adotei para escrever nos Blogs onde os textos foram originalmente publicados.

Evoquei então os Ensaios, de Michel de Montaigne (a primeira edição ocorreu em 1580), obra que admiro muito e que foi um de meus objetos de análise no doutorado (ao lado da obra de Freud).

Montaigne criou este estilo de escrita em meio ao ambiente cético do Renascimento. Todo o sistema medieval entrara em crise, um novo Homem vinha sendo gerado, em meio a incerteza, a um ideal de liberdade, e a um mundo novo, cheio de descobertas trazidas de um mundo cada vez mais percebido como enorme e diverso. Polifonia (muitas vozes) é a música da época; feira de rua é seu espírito.

Cada homem põe-se agora a pensar e ter que decidir e se responsabilizar por seus atos. E entre incertezas que o movimento da vida se dá.

Montaigne então recolheu-se ao Chateau que leva seu nome, depois de uma carreira politica em Bordeaux e da morte do pai. Lá, ele passa a década seguinte escrevendo e, inevitavelmente, reescrevendo seus ensaios.

A incerteza, o ceticismo, o relativismo; nada disso o conduz à inação ou paralisia. Pelo contrário, este o ambiente o lança no movimento incerto da construção de si. Jean Starobinski, em seu belo livro Montaigne em movimento (Cia das Letras, 1993), diz que o movimento de céticos como Montaigne seria o seguinte: ele parte de umas suspeita sobre a realidade aparente e a crítica, distanciando-se; mas ele não encontra ponto transcendente (Deus, natureza, sujeito transcendente) onde se apoiar e desde onde se colocar como detentor de uma verdade superior; cético, ele retorna então ao mundo das aparências e opiniões, com a consciência de que este mundo é tudo de que dispomos. Então ele age e opina, em meio a incerteza, sem pretender medir ou legislar, sem levar os sistemas de conhecimento por demais a sério. Tudo é opinião, afinal. Este ceticismo é um lançar-se ao risco, assumindo a própria responsabilidade, e uma condição de tolerância: quem concebe constantemente poder estar errado pode ser acolhedor as opiniões dos outros, ao invés de defender as suas como se fossem verdades absolutas.

O ceticismo não é um relativismo imóvel, mas uma ação reflexiva e em risco, a procura de aprendizado com a experiência e com o outro.

Cito abaixo uma de minhas passagens favoritas dos Ensaios, onde seu método e motivo são explicitados:

“Outros autores têm como objetivo a educação do homem; eu o descrevo. E o que assim apresento é bem malconformado. Se o tivesse de refazer, faria-o sem dúvida bem diferente. Acontece que já está feito. Os traços deste seu retrato são fiéis, embora variem e se diversifiquem. O mundo é movimento; tudo nele muda continuamente. Não posso fixar o objeto que quero representar: move-se e titubeia como sob o efeito de uma embriaguez natural. Pinto-o como aparece em dado instante, apreendo-o em suas transformações sucessivas. Eu não pinto o ser, eu pinto a passagem. É pois no momento mesmo em que o contemplo que devo terminar a descrição [é preciso acomodar minha história à hora]; um instante mais tarde não somente poderia encontrar-me diante de uma fisionomia mudada, como também minhas próprias idéias possivelmente já não seriam as mesmas. Observo e anoto os diversos acidentes que ocorrem dentro de mim e as concepções mais ou menos fugidias que minha imaginação engendra, as quais são por vezes contraditórias ou porque tenha mudado eu, ou porque o objeto da observação apareça dentro de um quadro e de uma luz diferentes. Daí acontecer-me, não raro, cair em contradição, embora não deixe de ser autêntico. Se minha alma pudesse fixar-se, eu não seria hesitante; falaria claramente; como um homem seguro de si. Mas ela não pára e se agita sempre à procura do caminho certo. Se minha alma pudesse tomar pé eu não ensaiaria, eu me decidiria: ela está sempre em aprendizagem e à prova. Cada homem traz em si a forma inteira da condição humana”.

Para um psicanalista como eu, está tudo aí: incerteza, desejo, movimento. Sobretudo, condição humana expressa especificamente numa experiência singular. “Por grande que seja a variedade das folhas, chamam a tudo salada”, diz Montaigne; a esta busca comum pela conhecimento universal, ele opõe o valor daquilo que chama de “o brilho do ordinário”.

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