O copiloto da Germanwing. O insustentável peso de não saber.

Pedro de Santi

Enquanto começo a escrever este texto, ouço ao longe o programa de TV matinal que minha filha assiste. A letra da música que toca, diz: “legal, legal que dia legal. A gente achou a solução!”.

Nossa crença no mundo da técnica e na capacidade de dar explicações racionais às coisas foram novamente postas à prova nesta semana.

A queda de um avião na semana passada deixou um saldo de 150 mortos. Quando uma notícia como esta aparece, todos nos horrorizamos com as mortes e vemos realimentado nosso medo de voar. A tragédia provoca imediatamente a questão da causa do acidente. Nossa mente busca pelo sentido como forma de se recompor do potencial traumático do acontecimento.

Neste caso, a resposta veio muito mais rápida do que nos grandes acidentes aéreos anteriores. A caixa preta com o áudio dos últimos minutos do vôo foi encontrada e pode-se deduzir que o copiloto teria intencionalmente lançado o avião nos Alpes franceses, além disso, a trajetória traçada na queda só poderia ser produzida com atos específicos que impedissem o acionamento dos mecanismos automáticos de defesa da nave. Teria sido um suicídio acrescido do homicídio intencional de mais 149 pessoas.

A identificação da “causa humana” produz um primeiro alívio: a fábrica do avião e os mecanismos de tráfego aéreo não falharam. Podemos continuar a confiar neles e eles devem estar muito aliviados com isto.

Mas então surge uma ironia trágica: um dispositivo de segurança criado após os atentados do 11 de setembro criou a possibilidade de a cabine de comando ser blindada por dentro, para evitar a invasão de um sequestrador. Neste caso, este dispositivo permitiu que o copiloto mantivesse o piloto trancado irremediavelmente para fora e o copiloto tomasse o controle manual do avião para o atentado à vida de todos. Um avanço técnico gerou um “resto”, um risco até então inexistente. Passamos então a nos interrogar pelos procedimentos de segurança. Acreditamos (precisamos acreditar) que as empresas aéreas desenvolvem os mais altos padrões de segurança e que, como já começou a acontecer, imediatamente procurariam avançar nos procedimentos a partir do aprendizado como cada episódio, como este. E, provavelmente, gerando novos “restos”.

Resta então o verdadeiro enigma: como é possível que alguém se lance deliberadamente para a morte levando consigo 149 pessoas? Será que ele era um terrorista? Um dos jovens seduzidos pelo Estado Islâmico? Ele teria se inspirado no filme argentino Relatos Selvagens? A cena inicial trata exatamente de um suicídio/homicídio numa queda de avião.

De fato, não sabemos de quase nada sobre Andres, o copiloto, mas não se noticiou nenhuma relação com terrorismo. O que se achou foi o fato de que ele teria tido há seis anos um episódio grave de depressão e ansiedade e teria feito terapia por seis meses. Depois, encontrou-se na casa dele uma dispensa médica para o dia do acidente rasgada.

Fora isto, a notícia de que ele tinha uma namorada e que talvez tivesse terminado o namoro recentemente. Tudo muito vago e frouxo.

A rigor, não sabemos de quase nada, sobretudo, de nada capaz de justificar aquele ato extremo. Aparentemente, ninguém (sobretudo, o piloto) notou nada de grave em seu comportamento, alguma perturbação que anunciasse um surto psicótico. A gravação de audio da cabine registrou a respiração do copiloto na cabine até o momento do choque, o que mostra que ele estava vivo. Mas como manter uma respiração normal nos momentos que antecederam a morte iminente? Não sabemos de fato o que se passou e provavelmente não iremos saber, a não ser que se divulgue alguma mensagem que ele tenha deixado de alguma forma.

Mas nossa maquininha de criar sentido não se conforma e se apressa a dizer: “Há, há! Ele tinha uma doença mental”. A gente achou a solução, como cantava repetidamente a canção do programa infantil da minha filha. Pronto, o absurdo do suicídio e homicídio foi pacificado. O cara era louco e loucos fazem loucuras, diferente de nós, gente boa. Saudades do Foucault e sua “História da loucura na Idade Clássica” (1960).

Se a sombra da depressão explica e encerra o caso para o senso comum, bom para ele. Por outro lado, imaginemos as derivações desta conclusão precipitada.

Certamente, os padrões de seleção e treinamento de pilotos será mais rígido em suas avaliações psicológicas. Talvez nos encaminhemos cada vez mais para vôos não tripulados, à procura de eliminar o “fator humano”. Mas, como disse acima, a racionalidade, o controle e a técnica sempre deixam e geram novos ruídos e restos. Não é possível prever com segurança se uma pessoa tem potencial de suicídio: se fosse, provavelmente não existiriam tantos. O comportamento humano tem uma complexidade tal, uma tal combinação de variáveis, que torna, de fato, impossível previsão e controle, para o bem e para o mal.

Mas o que mais me preocupou neste “diagnóstico” precipitado do copiloto foi a estigmatização do depressivo.
Por derivação deste caso, pensemos na quantidade de pessoas que ao longo de sua vida já passou por tratamentos de depressão. Todos conhecemos a condição quase epidêmica dela. Entre o esgarçamento dos critérios diagnósticos e o verdadeiro aumento desta forma de sofrimento, quantos entre nós tomamos alguma vez na vida uma medicação anti-depressiva ou fizemos tratamentos psicológicos, mergulhados em profunda tristeza?

Todos os que tenham passado por um episódio de depressão carregarão o estigma de suicida/homicida em potencial? Terão seu acesso a posições de trabalho que envolvam risco impedido?

Ainda que haja relação entre depressão e suicídio (uma das principais causa de morte no mundo, embora pouco se fale a respeito) a relação não é simples ou direta: nem todo depressivo é suicida, nem todo suicida é depressivo. Reduzir o suicídio à depressão é ainda uma vez mais a tentativa de aplacar com a tarja de louco aquele que comete o absurdo (para muitos) de interromper a própria vida.

Não é pequeno o custo que pagamos e impomos aos outros que paguem por nossa dificuldade em habitar o “não saber”.

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