Nenhuma mulher sonhou, quando criança, ser madrasta

Pedro de Santi

“É só puxar o ‘avesivo’!”. Assim, minha filha de três anos tentava explicar para a futura madrasta como colocar uma fralda nela. Eu havia saído deixando as duas sozinhas pela primeira vez e, no intervalo, a troca de fralda se tornara uma necessidade inadiável. Sem nenhuma prática ainda então, a missão parecia impossível e, naturalmente, indesejável. Quando cheguei, encontrei algumas fraldas no chão e as duas vivas.

Este texto é uma singela e sincera homenagem no dia das mães às “mães do coração”, tão desprestigiadas pela literatura infantil e relativamente redimidas nas refilmagens recentes de seus clássicos.

Há alguns anos, na função de paraninfo de uma turma de Comunicação Social da ESPM, em meu discurso estendi meus cumprimentos aos pais também aos padrastos e madrastas. Poucos meses depois, uma matéria na Revista Pais e Filhos fazia referência ao meu discurso. A Colunista estivera na formatura como madrasta de uma das formandas e se emocionou com a lembrança àqueles tão comumente ignorados. Tendo acompanhado toda a vida escolar da filha de seu marido, no dia da formatura não sabia bem onde colocar as mãos; era como se não houvesse lugar para ela naquele ritual que parecia pertencer à família anterior de seu marido. A coluna contava justamente como, no dia a dia, padrastos e madrastas convivem com a vida real e sustentação dos afazeres cotidianos mas, na hora das grandes comemorações, os pais biológicos são convocados, deixando-os sem lugar para posar na foto.

E ainda no dia a dia, eles tem autoridade sobre o enteado? Podem dar broncas ou participar nas decisões sobre a escola? Tudo leva a crer que eles têm o ônus sem ganhar o bônus. Para piorar ainda mais a situação, caso este novo casal também se separe, o mais provável é que o vínculo criado entre padrasto e enteado seja dissolvido.

Famílias recompostas são cada vez mais comuns numericamente, mas, de fato, ainda não sabemos como conviver com os planos de realidade envolvidos. Há uma família desfeita pela separação de um casal; quando há filhos daquele casal e um deles ou ambos reconstroem uma vida familiar, cria-se uma tensão ou cisão de realidades para a criança, que habita duas casas. O nascimento de filhos dentro da nova família acirra bastante o choque de realidades.

Para o novo cônjuge, um filho vindo de um casamento anterior é algo que vem “no pacote” trazido por seu novo parceiro, provavelmente algo indesejado e a ser suportado. Trata-se quase sempre de uma contingência, não de um desejo, como na frase que nomeia o texto: ela é da psicanalista francesa Catherine Audibert, em seu livro Le complexe de la marâitre (Paris: Payot, 2007): um belo livro sobre famílias recompostas.

De uma lado, a simples presença daquele filho é a lembrança constante de que seu parceiro já teve uma história amorosa com outra pessoa. E uma história tão séria que resultou num filho. É comum que haja uma semelhança física com o outro genitor, o que uma vez mais reforça a presença cotidiana daquela história anterior no interior da nova família.

Em geral, procuramos apagar os rastros de nossas histórias amorosas anteriores, para evitar ciúmes ou comparações entre as experiências. Queremos nos sentir únicos ante nossos parceiros ou, no mínimo, sentir os últimos, aqueles pelos quais o outro esperou a vida inteira. E tentamos oferecer esta mesma ilusão aos nossos parceiros.

Sem filhos, isto já não é fácil mas, basicamente, envolve o sumiço de algumas fotos, o afastamento de alguns amigos e o policiamento verbal para não se trocar nomes ou fazer referências felizes à situação anterior. Convém pintar o ex parceiro como um ser terrível e mortífero de quem foi uma benção de distanciar. Com isto, a nova família pode representar uma nova chance, um salvação, uma redenção: “antes foi um engano, agora é que real e para sempre!”. A existência do filho do casamento anterior fura em parte essa retórica.

Para aqueles que estavam numa família e reconstroem a outra, o papel é sempre o de criar mediações, com um bocado de política. Manifestações de amor ao filho de um núcleo familiar frequentemente são tomados como preferência com relação ao outro. A dedicação ao filho da família anterior pode ser entendido, da mesma forma, como a permanência da ligação ao casal anterior.

Ex parceiros, por suas vez, costumam demonizar os padrastos e madrastas, com muito medo de que roubem seus lugares, uma vez que um de seus lugares já foi, de fato, ocupado. Com isto, os filhos percebem que manifestar seu afeto ao padrasto ou madrasta machuca seu pai ou mãe. Num certo sentido, é preciso que os pais autorizem seus filhos a amarem os novos parentes.

Num texto de 1908 chamado A novela familiar do neurótico, Freud trata entre outras coisas, desta relação em histórias infantis. É comum que as personagens sejam mau tratados por madrastas, tendo perdido precocemente mães ou pais amorosos. Na interpretação de Freud, na realidade as madrastas dos contos de fada representam as mães reais, em suas funções educativas de repressão e cobranças; a mãe perdida precocemente representaria aquela lembrança primitiva de uma mãe que seria só boa e acolhedora. O amadurecimento da criança faria com que ela entrasse no mundo da educação e, ao mesmo tempo, percebesse que a mãe não é só “legal”. Em suma, mãe e madrasta de conto de fada são momentos da representação da própria mãe: mãe idealizada versus mãe da realidade.

Quando passamos a nos aborrecer e com nossas mães ou filhos (por cansaço ou frustração de nossas expectativas), compensamos a raiva que isto gera com o montante de amor (narcísico) que reveste esta relações. Mas quando esta mesma frustração surge numa relação que não possui o vínculo amoroso de base, ela só pode resultar em hostilidade.

Padrastos, madrastas e enteados são pessoas com quem mantemos relações familiares, com todas as suas contingências, mas a eles nos permitimos odiar, sem a interdição, culpa ou compensação do amor mais primário que dedicamos à família original. É bem mais difícil admitirmos a raiva que sentimos por eles.

Meus cumprimentos e admiração então àqueles que se incumbem das funções de cuidado de alguém que não é seu filho de sangue, constroem por toda uma vida uma relação de intimidade familiar e que vivem um drama pós-hamletiano: ser e não ser, concomitantemente.

Quase nove anos após a cena da fralda, aquela minha filha neste ano me pediu para irmos a um shopping para comprar um presente para a mãe e um para aquela madrasta. Quando tentei dar um palpite no presente da segunda, fui dispensado: ela sabia melhor que eu do gosto da madrasta pelo convívio familiar, de mulher para mulher.

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