“Não espere que uma serpente não tenha presas”

Pedro de Santi

Não, não me refiro a Lula, Dilma, Aécio, Marta Suplicy ou Eduardo Cunha.

A frase é uma das pérolas do roteiro da terceira temporada da série “House of Cards”, lançada há pouco menos de um mês.

Muito já se falou sobre a saga de sucesso de Francis Underwood e sua esposa Claire: atores excepcionais, as personagens secundárias muito interessantes e bem desenvolvidas, o crescimento ao longo das temporadas do papel de sua mulher e das mulheres, em geral.

Com os cuidados de não entregar spoilers, é irresistível fazer relações variadas com a situação crítica de nossa política atual. Um dos grandes temas da terceira temporada é o que acontece com um grande articulador político de bastidores quando ganha visibilidade, saindo do trabalho silencioso e ocupando o centro do poder.

Ainda que já seja um clichê, é importante ver como aquele que tanto almejava o poder, assim que alcança o cargo máximo do planeta, de fato, o perde. Uma grande raposa política se vê quase que imobilizada.

Outra referência irresistível da série é à peça Otelo, de Shakespeare. Está em cartaz na cidade, aliás, uma bela montagem no Teatro Municipal da ópera de Verdi, baseada na peça. Quem conhece a peça sabe que a tensão se dá entre Otelo, o mouro de Veneza (Na montagem atual no municipal, o negro foi deslocado para as roupas e Otelo virou o “louro” de Veneza). Um soldado negro que ascende por mérito ao poder, apaixona-se pela bela e cobiçada Desdêmona e tem sua paixão correspondida. Mas ele se mantém inseguro em sua condição de estrangeiro e é presa fácil de um dos mais emblemáticos vilões da literatura: Iago. É a ele que Underwood remete, inicialmente.

Iago e Frank aguardam por uma indicação a certo cargo ao qual acreditam merecer. Ante a frustração de não serem indicados por quem ajudaram a alcançar a posição de poder, enchem-se de ressentimento e se dedicam a destruir tudo em torno, começando por quem ocupou o cargo em seu lugar e continuando em direção à figura de poder de quem não obteve o reconhecimento. Ambos contam com uma inteligência superior aos que estão à sua volta e com uma “liberdade de ação” que só um psicopata pode se permitir: eles não tem limites e nem um pingo de sentimento de culpa.

Neste percurso de ódio, busca cumplicidade com o público; seus pensamentos mais íntimos são ditos quando estão sós em cena, mas olhando para o publico com extrema ironia, tornando-o seu confidente e cúmplice. Nós nos vemos, constrangidos, “torcendo por eles”, enquanto sabemos que são criminosos. Isto na base do sucesso de muitas das séries atuais.

A esposa de Iago era Emília, uma companheira à altura de sua inteligência. A esposa de Otelo é Desdêmona, altamente desejada e de uma ingenuidade inacreditável. A esposa de Frank Underwood é Claire, uma companheira na ambição, ou num “projeto de poder”, para usar uma expressão mais em voga. Inteligente como Emília e desejável como Desdêmona, ela é altamente demandante. Claire não faz o papel de retaguarda onde o marido pode encontrar acolhimento; pelo contrário, ela é extremamente ambiciosa e exigente e é sobretudo aos ideais dela que Frank deve prestar contas. Ela é seu primeiro espelho.

Iago não chegou ao poder depois de ter destruído tudo à sua volta; Frank sim. Nas primeiras duas temporadas da série, Frank remete a Iago; na terceira, está mais para o inseguro Otelo.

Talvez haja gente melhor talhada para a função de eminência parda (a pessoa que exerce um alto poder em condição de quase invisibilidade, dando sustentação a quem ocupa uma função de poder) do que para estar em primeiro plano. Talvez haja uma diferença entre ter poder e ocupar uma posição de poder.

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