Pedro de Santi
Daqui do morro dá pra ver tão legal
O que acontece aí no seu litoral
Nós gostamos de tudo, nós queremos é mais
Do alto da cidade até a beira do cais
Mais do que um bom bronzeado
Nós queremos estar do seu lado
Alguém se lembra? Esta é a primeira estrofe de “Nós vamos invadir sua praia” clássico da banda Ultraje a rigor, dos longínquos anos 80. E os cariocas não gostam de dizer que o shopping é a praia dos paulistanos? Então. As invasões bárbaras podem vir anunciar a queda do império estabelecido.
Um grupo estabelecido como dominante por um dado período e que estabeleceu uma identidade bem definida vê seu espaço ser frequentado por pessoas que, em busca de ascenção social, mimetiza elementos daquela identidade. O sentimento não é apenas de invasão do espaço que lhe é próprio, o que já não seria pouco, mas de ameaça de perda de identidade. A apropriação das marcas de identidade por membros externos ao grupo dilui o valor e a definição do grupo original, dissolvendo sua existência.
A “velha” classe média se melindra com a “nova” com medo da correria que ameaça suas crianças e com medo de saques e furtos, sem dúvida. Mas, mais do que isto, ela se ofende com o fato de que a “nova” professa a mesma fé que a sua: a realização social é traduzida por uma única chave: o acesso ao consumo. Índices como educação, cultura, politização ou consideração para com o outro não contam. Talvez a velha classe média veja a invasão pelos jovens como um espelho côncavo a refletir o próprio ridículo de ter aberto mão da praça pública em favor dos shoppings.
Lembro-me de alguns anos atrás ler na Folha o artigo de um dos colunistas regulares reclamando da lotação dos aeroportos, que passaram a parecer meras rodoviárias. A invasão era feita por pessoas que podiam agora financiar suas passagens e pacotes turísticos. O advento do crédito popular criou justamente esta questão: a dissolução dos índices objetivos de posicionamento social. Imperdoável. O consumo era um índice de status desde o século XVII, afinal. Mas não é esta mesma velha classe média que desfrutava de lojas de marcas internacionais que só no Brasil aceitam o parcelamento da compra? Ela não queria, por sua vez, apenas mimetizar uma aristocracia? Mais recentemente, o mesmo colunista da Folha que reclamou dos aeroportos cheios pediu em uma coluna que os jovens que fazem os rolezinhos deixem os shoppings em paz…
Em 2013, a diretora Sofia Coppola lançou um filme chamado “The Bling Ring”. A diretora de filmes tão sensíveis e inteligentes foi acusada de ter feito um filme muito superficial. Em sua defesa, muitos disseram que superficial era a realidade que o filme denuncia. Um grupo de jovens de classe alta se dedica a invadir e furtar a casa de celebridades de Hollywood. Eles o fazem sem nenhuma culpa e fascinados por estarem no espaço privado das celebridades e levarem algo que lhes pertence, como um amuleto. Mas quem são as celebridades de referência? Lady Gaga, Lindsay Lohan e outras tantas célebres não propriamente por sua arte, mas por sim por sua habilidade em se tornar notícia. Elas são celebridades pelo fato de serem celebridades. Sua verdadeira arte é serem como são na maior visibilidade que puderem obter. Em última instância, os jovens invasores apenas mostravam que entenderam esta lógica de funcionamento e a clonavam. Ao serem presos, passaram a ser eles mesmos celebridades, e se comportavam como tal.
Vendo aí uma alguma semelhança, os invadidos não são de fato muito diferente dos invasores, mas detestam ser lembrados disto.
De toda a maneira, assistimos aos efeitos deletérios de termos passado a última década estabelecendo uma simples identidade entre acesso ao consumo e cidadania. Não há dúvidas de que há relações entre uma coisa e outra, mas nos satisfazermos com os índices do primeiro (e agradecermos por ele sustentar nosso Pibinho há anos) pode ter nos embriagado e feito perder de vista a segunda.
Os jovens que fazem o rolezinho se recusam a ser identificados com manifestações de protesto ou crítica à sociedade de consumo; pelo contrário, eles acabam de ingressar na mesma, tem de fato consumido muito e querem é mais. Consideramos que existimos e somos incluídos socialmente pela chave exclusiva do consumo.
Quando o fenômeno explodiu, naturalmente saímos todos a tentar compreendê-lo e muita coisa (muita mesmo) foi produzida pela mídia neste sentido. Uma charge especialmente engraçada mostrava um grupo de rolezinho correndo da polícia; em seguida o grupo aparece correndo em sentido oposto, agora de sociólogos.
De um lado, podemos diferenciar o plano da experiência -o que os jovens estão buscando e como compreendem o que fazem- e o plano da análise, que vê nos rolezinhos o sintoma de algo mais amplo, bem além da intenção de seus participantes. De outro, podemos perceber que os participantes dos rolezinhos não estão dispostos a serem transformados em massa de manobra; terem sua potência de mobilização apropriada por outras causas. Foi assim também com os manifestantes de junho. Eles também se organizavam via redes sociais e não se filiavam a nenhuma organização. Partidos políticos e grupos organizados por causas sociais não têm conseguido este poder de mobilização e tentam pegar carona na vitalidade destas expressões espontâneas. Felizmente, penso, não tem conseguido.
Nas últimas semanas, os rolezinhos já desapareceram dos shoppings, desfazendo a cena armada pela polícia, pelos grupos sociais organizados e pela mídia. Neste fim de semana de aniversário de São Paulo, houve um rolezinho no parque do Ibirapuera, com a característica correria de meninas quando viam chegar suas celebridades, e sem brigas. Enquanto isto, uma manifestação contra a copa partiu do Masp, nos moldes daquelas de junho, seguiu para o centro. Um grupo de blackblocs partiu para o de sempre já no centro e acabou encurralado e muitos membros foram detidos na Rua Augusta.
E os shoppings? Ao fecharem suas portas preventivamente, fazem o serviço de nos lembrar- ou ensinar para quem não sabia- que eles não são um espaço público. Eles ensinam ao jovens da periferia aquilo que vinha sendo escondido deles nos últimos anos: não basta ser consumidor para ser cidadão.