Por Pedro de Santi
A pergunta é só retórica. Não tenho dúvida a respeito. Medeia conta uma das histórias mais clássicas sobre a feminilidade e sua desqualificação.
A história conta com inúmeras versões, começando pela tragédia de Eurípedes, passando por algumas operas, inclusive uma recente, de 2010. Há cerca de 40 anos, Pier Paolo Pasolini filmou a tragédia, com Maria Callas no papel principal. No Brasil tivemos uma adaptação nos anos 70, por Paulo Pontes e Chico Buarque; Gota d’água. Algumas das canções do Chico são clássicas e aparecem no disco que gravou ao vivo com Maria Bethania: Gota d’água, Flor da idade, Bem querer.
As diversas versões ajudam ao mesmo tempo a adaptar a história a contextos distintos e a reforçar a universalidade do mito que subjaz a ela.
Medeia aparece em meio ao mito dos Argonautas. O heroi Jasão está em busca do velocino de ouro (a lã de ouro de um carneiro), encontra-o num reino. Como o rei não quer ceder o velocino, cria uma tarefa sobre humana como condição para que Jasão o obtenha. A tarefa só é realizada com a ajuda de Medeia, filha do rei que se apaixona pelo heroi. Ela é uma feiticeira (adiante na história, de feiticeira ela será rebaixada a ‘bruxa’). Jasão realiza a tarefa, toma o velocino e foge, levando Medeia.
Ela é, até aqui, a mulher apaixonada que larga tudo por seu amor. Na fuga, ela mata um irmão e corta-o em pedaços, só para retardar a perseguição de seu pai, que para em busca das partes do corpo.
Chegando a Corinto, o casal se estabelece e tem dois filhos. Daqui para frente, Jasão se revela um oportunista. Ele decide abandonar Medeia e os filhos para se casar com Glauce, filha do rei Creonte.
Medeia é agora uma mulher abandonada por seu amor depois de ter feito tudo por ele. Na versão da peça Gota d’água, ela é Joana, dez anos mais velha que Jasão. Depois de ter ensinado a ele tudo sobre a vida e assim que ele compõe seu primeiro sucesso como sambista, ela se vê trocada por uma mulher mais nova.
Abandonar a família e matar o irmão fazia sentido e se justificavam pela conquista da vida amorosa. Mas, com o fim desta, aqueles velhos crimes ressurgem trazendo culpa e arrependimento.
Ela implora que Jasão volte, ele é irredutível e tem a cara de pau de dizer que a está trocando pelo bem dela própria e dos filhos. Promete cuidar deles caso ela se cale e não atrapalhe os planos. Ela se desespera.
Entra em cena uma personagem interessante: o rei Creonte. Ele sabe o quanto o ódio de uma “ex” pode ser perigoso para sua filha (sábio Creonte). Ele vem banir Medeia; ainda que constrangido pela injustiça que sabe estar cometendo, ele se vê justificado como pai zeloso. Ela então implora para ter ao menos mais um dia para se organizar para o exílio. Creonte diz que acha que vai se arrepender, mas não pode recusar isto a uma mãe. Na peça Gota d’água, é quando toca a belíssima canção “Basta um dia”. Neste contexto, ela é de arrepiar.
Neste dia, Medeia planeja sua vingança que impedirá o casamento de Jasão. Seu ódio e ressentimento é ampliado pelo fato de Jasão, além de abandoná-la, não interceder em seu favor quando é exilada.
Quem é então Medeia? Mulher, mãe, estrangeira, bruxa, bárbara, abandonada, assassina do irmão, traidora do pai. Todos estes significantes se unem numa significação negativa e destrutiva. Ela acaba por se identificar com o mal a ela atribuído por todos. Se ela é assim ruim, só lhe resta fazer ruindades.
Reduzida e expulsa, ela reverte a situação de passividade e se reencontra com sua velha identidade: “Sou Medeia”, diz na ópera de Cherubini (de 1797); “Lembre-se de quem você é”, diz no filme de Pasolini. Ela se reergue no desejo de vingança e destruição. Mas a potência de que está preenchida é a de destruir.
A vingança consiste em fingir ter se conformado com a situação e enviar, através dos filhos, presentes a Glauce. Trata-se de uma tiara e uma vestimenta envenenadas. Ela convoca Jasão e diz que aceita o casamento. Pede aos filhos que não tenham raiva do pai, pois as diferenças entre eles foram resolvidas. Eles vão com Jasão, entregam o presente e voltam sozinhos para casa.
Nas versões clássicas, Glauce recebe os presentes e os veste. Ela então é envenenada e é tomada por fogo. Creonte, o pai amoroso, lança-se sobre ela e acaba por morrer também. Em Gota d’água, no entanto, Creonte percebe que alguma a macumbeira da Medeia deveria estar aprontando e impede que Glauce receba o presente. “Nosso” Creonte é mais sábio que os outros.
Enquanto isto, Medeia executa a parte mais terrível de sua vingança. Pensando em como ferir Jasão, ela conclui que ele só ama os filhos e decide matá-los. Poucas imagens podem ser tão absurdas quanto a de uma mãe matar seus filhos. Isto dá a medida do ódio com o qual Medeia vê sua própria condição de mãe e mulher abandonada. Na ópera de Cherubini, ela diz ver o olhar dissimulado do pai nos filhos, de modo que, ao matá-los, ela sente estar destruindo seu algoz. Ao matar os filhos, ela fere de morte Jasão e mata a si própria enquanto mãe. Mas ela também se iguala a Jasão: ela que fora usada como um objeto, faz então o mesmo com seus filhos.
Quando Jasão chega, vê Medeia com os filhos mortos a facadas no colo. Ele se horroriza com o que vê, chama-a de louca e pede para ao menos poder tocar seus filhos pela última vez. Ela nega e o obriga a presenciar a cena. Em Eurípedes, ela foge numa carruagem de fogo; em Pasolini, ela põe a casa em chamas e morrerá com os filhos nos braços; em Gota d’água, ela fica sabendo que Glauce escapou, mata os filhos e se mata.
A tragédia grega Medeia é de Eurípedes. Dentre os autores de teatro clássico, ele é quem mais profundamente mergulha no mundo humano da paixão. Não são os deuses que nos movem, mas o pathos: a paixão, a patologia, a passividade que sofremos ante aquilo que nos supera.
A peça pode ser lida por inúmeros vieses, entre eles: o da força das paixões; ou o do ressentimento da mulher abandonada que, para ferir o ex-marido, dispõe-se a usar os próprios filhos como instrumento.
Se Medeia não parecer contemporânea ao leitor, considere então Jasão. Pragmático, oportunista, puxa-saco de poderosos atrás de cargos e boquinhas, bom de conversa, vazio de conteúdo e paixão. Ontem como hoje, figurinha triste e comum.
A paixão louca ante o desamor
Os professores Pedro de Santi e Celso Cruz irão contar e mostrar trechos de algumas obras plenas de paixão e sabedoria sobre o Homem.
O local: Auditório Kotler
Dia e Horário: 21/03/13 – das 13h30 às 15h00