Madonna, a arte e as criancinhas pobres

Por César Veronese, professor do CPV Vestibulares

Madonna acaba de anunciar a doação de um quadro de sua coleção particular, TRÊS MULHERES À MESA (TROIS FEMMES A LA TABLE), pintado em 1921 por Fernand Léger, um dos mestres maiores do Cubismo. O leilão ocorrerá no próximo dia 7 de maio, na Sotheby’s, e o valor está estimado em US$ 7 milhões.
A cantora declarou em nota oficial: “Eu tenho uma grande paixão por arte e uma paixão maior ainda pela educação. Em parceria com a Sotheby’s, eu gostaria de compartilhar essas duas paixões. Escolhi leiloar esse quadro de Fernand Léger e doar sua arrecadação para ajuda nos projetos de educação para garotas no Afeganistão, Paquistão e outros países onde a educação feminina é rara ou inexistente. Não posso aceitar um mundo onde mulheres e meninas são feridas, baleadas ou mortas por irem à escola ou por ensinarem em escolas de meninas. Não temos tempo de ser complacentes. Quero negociar algo valioso por algo inestimável – Educar Meninas! Conhecimento é poder. Vamos mudar o mundo!”
Ações sociais nobres evidenciam que nem todos os quadrúpedes deste planeta são egoístas. Se todas as pessoas ricas fizessem ações sociais, o mundo poderia ser o Paraíso anterior ao pecado original, o Jardim de Alá ou uma imensa Disneylândia, de acordo com o gosto de cada um. E quando essas obras bem-intencionadas envolvem crianças, podemos sentir a paz roçar nosso rosto e deixar o coração cantar a fraternidade universal. É neste ponto, no entanto, que devemos fazer o papel do advogado do diabo e desconfiar de tanta bondade. Sobretudo quando tais gestos envolvem o mundo pop.
Roberto Carlos há décadas grava seu Especial de Natal para a Rede Globo e nunca se esquece de incluir uma música com criancinhas entoando loas para a paz. E lá está, quase todos os anos, uma gangue de pirralhos saltitando a rampa do Congresso Nacional e entoando os lá lá lá lá lá da “Guerra dos Meninos”. Mas, curiosamente, se formos ler as letras das suas centenas de canções, não encontraremos nenhum verso de indignação, por exemplo, contra os abusos da ditadura militar durante os mais de vinte anos em que o regime vigorou no Brasil. Enquanto criancinhas tinham seus pais torturados e assassinados nos porões do DOI-CODI, Roberto cantava coisas como: “Meu calhambeque bi bi”, ou “Quero que você me aqueça nesse inverno e que tudo mais vá pro inferno”.
Xuxa, a autointitulada Rainha dos Baixinhos, sempre entendeu as crianças como criaturas alheias ao raciocínio. Por isso suas “músicas”, uma gritaria ginástica com refrões onomatopaicos, convocam as crianças à pirueta, ao sapateado e a repetirem alguma bobagem travestida de alegria, como no hit “Rambo”, cujo refrão se contenta em repetir “Rambo, rambo, rambo, uou uou uou, Rambo, rambo…” Uma apologia à força do personagem vivido por Sylvester Stallone em seus Rambos em série. Xuxa ensina, assim, os baixinhos a louvarem um “herói” cujos filmes são uma propaganda para a legitimação do massacre dos vietnamitas pelo Exército americano. Na música, as crianças não são informadas da biografia real de Stallone, que, quando convocado para servir no Vietnã, fugiu para a Suíça, onde foi trabalhar como professor de educação física num colégio para moças!
Didi, outro herói da TV brasileira, também é um defensor das criancinhas pobres e foi dos primeiros a encampar o CRIANÇA ESPERANÇA. Seus personagens, no cinema e em seu programa já senil, não deixam nunca, no entanto, de expor o estereótipo do nordestino tapado, da doméstica burra, do gay abichalhado… Seu público não percebe, no entanto, que, por trás do riso simplório provocado por seus personagens, inocula-se o preconceito e reafirma-se o status quo de uma sociedade autoritária. A lista poderia se estender… Crianças são, quase sempre, um dos alvos preferidos para a canalhice de obras “sociais” cujo objetivo, no fundo, é promover os negócios dos seus incentivadores.
Madonna alardeia vanguarda mas na essência reafirma conservadorismo. Seus discos são versões de uma mitologia do eterno feminino. O hit que a projetou, “Like a Virgin”, dizia: “Like a virgin/Touched for the very first time/ I’ll be yours/’Til the end of time”. O nome de seus álbuns envolvem mistérios, revelações e enclausuram a fêmea à cama, onde ela aguarda pelo senhor que finalmente trará a chave do seu cinto de castidade: “Like a Virgin”, “Erotica – The Immaculate Collection”, “I’m Going to Tell You a Secret”, “Confessions”, “Bedtime Stories”, “Hard Candy”…
Esse clima de segredos e mistérios (do amor ou de Deus?), quase uma clausura de carmelita, é reforçado por seu visual, o qual mistura cuidadosamente erotismo e misticismo. Crucifixos balançando-se entre o caminho dos seios, virgindade materialista (cruzando as letras de “Like a Virgin” e “Material Girl” percebemos que ela é tocada como uma virgem pela primeira vez, mas admite ser uma garota materialista), a negritude das sombras e o vermelho do prazer….
À fusão do erótico com o místico vem somar-se o estereótipo da loira burra e gostosa – reatualização do mito de Marylin Monroe – e a sensualidade caribenha, deslanchada desde “La Isla Bonita”. E está pronta a fórmula para atingir o público.
Madonna sempre polemizou. Ou melhor, o departamento de marketing de sua gravadora, juntamente com seu fabricante de hits, Pat Leonard, sempre se encarregaram de inventar as polêmicas. Primeiro foi a iconografia sagrada e profana, depois foram os ensaios fotográficos (lembram do livro em que ela simulava transar com cachorros?), mais tarde as declarações públicas antes da primeira gravidez (ela dizia desejar um filho homem, desde que fosse gay). Em seguida veio o casamento com um cubano, a maternidade, a adoção de criancinha órfã, o casamento desfeito, outro casamento…
Paralelamente, ela continuou a gravar videoclipes e a se exibir no palco com bailarinos bombados repetindo a mesmíssima fórmula: a eterna simulação da cópula, que, em meio a crucifixos e exaltação da virgindade, nada mais é do que o endosso das mais conservadoras bulas papais. Essa fórmula batida foi decalcada por vários artistas brasileiros, como o atestam as centenas de dvd’s ao vivo das nossas duplas sertanojas, axezeiras, pagodeiras e musas do tecno-brega. O mundo está mesmo globalizado.
Mas por que uma fórmula tão careta e sem originalidade faz tanto sucesso? Porque concebida no contexto de numa sociedade conservadora e repressora. Numa sociedade livre, na qual a sexualidade não fosse um tabu e a religião não atuasse como um mecanismo de controle ideológico, dificilmente Madonna faria sucesso.
Os primeiros fãs da cantora, como ela, chegaram à casa dos cinquenta, e provavelmente já perderam a virgindade. Talvez também não se choquem mais ao vê-la montando um cachorro num ensaio fotográfico. É provável que muitos também não tenham mais paciência para aguardar seus atrasos de até três horas antes do início do show. Quando se tem 17 anos, isso é divertido; aos 50, a artrite impõe limites. Além disso, os fãs já não acham tão performático ver bailarinos repetirem as mesmas piruetas eróticas, enquanto a artista não acerta o compasso com o playback! Para piorar tudo, inventaram essa menina que leva o brechó inteiro para o palco, Lady Gaga.
Diante de quadro tão decadente, o que pode fazer Madonna? Obras sociais, ora! E, quem sabe, se tornar uma galerista. O que não dá para engolir, então, é esse exibicionismo chinfrim que se quer cult e solidário. Se a questão é ousadia, a história da “bunda music” brasileira a supera. No filme RITA CADILLAC, A LADY DO POVO, de Toni Ventura, vemos, por exemplo, a então chacrete brasileira rebolando no garimpo de Serra Pelada, em meio a 30.000 homens enlameados, mais ávidos pelo seu bumbum do que por qualquer pepita. Rita justifica sua carreira como um projeto para juntar dinheiro para financiar os estudos da filha. E o que dizer do Programa do Silvio Santos, quando, nos idos dos anos 80, oferecia à família brasileira uma espécie de sobremesa dominical, com o quadro Qual É a Música?, no qual Gretchen surgia empinando-se ao som de (vídeos no you tube) “Conga Conga Conga”, “Melô do Piripipi” ou “Freak le Boom Boom”?
E se Madonna insiste em ser ousada em termos políticos, ela deveria conhecer um pouco da crônica de outras cantoras. Como a conterrânea dela, Nina Simone, que pensando na causa dos negros, no auge de seu sucesso, ao invés de se enclausurar numa cobertura com vista para o Central Park, foi morar na Libéria. Ou então a atitude de Elis Regina, que, quando já era uma unanimidade nacional, com direito a programa de televisão próprio, fretava um ônibus, juntava-se a sua banda (não como fazem hoje as musas do axé, que despacham suas bandas num pau de arara enquanto elas se deslocam em jatinhos particulares bebericando champagne com catuaba) e ia fazer shows em precários teatros universitários pelo interior do Brasil.
Ou ainda a ousadia de Maria Bethânia, quando, em plena era do download, avança na contramão de tudo para lançar discos com repertórios inteiros de poetas e declamá-los intercalados com músicas à capela (bem diferente dos playbacks da Madonna). Mais: quando o Planeta se rende ao consumo e as cantoras ostentam nas capas de seus discos roupas e sapatos de grifes, Bethânia pisa seu palco descalça e ostenta na capa do último disco uma fotografia de uma rua de chão batido, no sertão da Bahia, OÁSIS onde está, segundo ela, “a força que nunca seca”. A força do povo, a dignidade da vida, a grandeza da música. Sem lá lá lá para criancinhas, sem gesticulação amalucada, sem crucifixos erotizados, sem leilões hipócritas.

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