Lançamento do livro Existir na cidade 2: memória

No próximo sábado, 7/03, às 11:00 hs, vamos lançar na Casa do Saber o segundo livro do Grupo de Pesquisa Eu e o outro na cidade, de professores da graduação da ESPM.
“Existir na cidade 2: memória”, organizado por mim e por Clarissa Sanfelice Rahmeier, com artigos dos 11 membros do grupo e duas alunas pesquisadoras. 
O livro é exclusivamente digital, e no lançamento iremos disponibilizar o link para acesso gratuito.

Abaixo, a apresentação do livro.

Clarissa Sanfelice Rahmeier e Pedro de Santi

Este é o segundo livro do Grupo de Pesquisa Eu e o Outro na Cidade, elaborado um ano após o lançamento do primeiro. O intervalo parece pequeno? Não na passagem de 2018 a 2019, período em que vivenciamos na carne e na mente as angústias de uma inflexão no trato com a cultura, com o saber, com os direitos humanos e trabalhistas e com a política ambiental. A sensação é de vivermos em um outro planeta enquanto em nosso próprio país. Num contexto como esse a produção intelectual fervilha, mas às custas e apesar das dores na carne. Ainda assim, e mais ainda, estamos aqui. E seguimos juntos. Seguimos com o que motivou a criação deste Grupo: a ideia de que a cidade pode ser vivida a partir de possibilidades mais felizes e civilizadas de habitação e convívio.

Quando o Grupo Eu e o Outro na Cidade foi criado, São Paulo vinha abraçando novas dinâmicas e diálogos, com ciclovias, grafites e ocupações artísticas de diferentes matizes ideológicos. Em 2019, entretanto, um sentido de deterioração parece ter manchado a civilidade e a felicidade, não somente em São Paulo. Sentimos esse peso de diferentes formas. Como grupo, respeitamos cada luto individual e, em conjunto, resistimos. Mantivemos a delicadeza do encontro presencial, das mensagens de força e do compartilhar de ideias. No plano individual e coletivo travamos pequenas e grandes batalhas e produzimos um pensar sobre a cidade que a enxerga com dureza e com esperança. Os textos que compõem este livro demonstram esses olhares nem um pouco homogêneos.

Sempre é bom lembrar da consideração de Foucault, em As palavras e as coisas (1966), segundo a qual justamente a função das Ciências Humanas é fazer lembrar das próprias condições, afinal precárias, da produção de conhecimento. Neste “fazer lembrar” ou “não deixar esquecer” das estruturas e condições que sustentam nossa experiência imediata da realidade, reside a mais fundamental dimensão ética de nosso trabalho. Por isso resistimos, não somente como grupo de pesquisa, mas como um grupo de professores de Ciências Humanas da Graduação da ESPM.

A partir de nossos estudos no campo amplo da subjetividade e sua relação com o outro e a vida política, elegemos a memória como temática central deste livro. Assim, a relação entre subjetividade, alteridade e memória pautou nossas reflexões sobre a cidade em várias de suas dimensões. A memória do passado, do presente e do futuro é aqui discutida em relação à vivência da cidade.

Compartilhamos, aqui, x capítulos de x autores. Iniciamos esse compartilhar com o texto de Guillherme Mirage Umeda sobre as possibilidades de um desenho real da cidade a partir da poesia e da idealização de seu futuro. Não se trata de um devaneio ou recurso onírico meramente especulativo, mas de um gestar de pensamento que vê na imaginação uma semente para a realização de uma cidade melhor e mais poética. Voltada para um presente mais premente e pautado pela perecibilidade está a contribuição de Christiane Coutheux Trindade. Ao trazer para a reflexão episódios trágicos vivenciados por alguns e acompanhados por muitos, Christiane evoca a sensibilização individual que o sujeito sofre ao ser habitado pelo mundo. A partir de uma crítica do presente pautado pela busca do lucro, a autora reconhece na política e na coragem a possibilidade para frear o atual devastamento inconsequente e sem volta de vidas, de histórias e de memórias.

Em uma abordagem também da atualidade, mas agora a partir da subjetividade permeada pela quase onipresença da tecnologia, Pedro de Santi reúne, em seu capítulo, ensaios através dos quais reflete sobre o quotidiano na cidade. Questões acerca de temas como representação, gênero, política, cinema, família, profissão e saúde mental são trazidas em uma linguagem acessível e inclusiva: quase coloquial, a forma com que Pedro propositadamente comunica estudo e ciência aproxima o leitor das complexidades de sua própria existência sem, no entanto, banalizá-las. É com estes temas e por esse viés que de Santi traz as memórias implicadas na vivência existência na cidade. Seguindo também por uma abordagem sobre a vivência do tempo no cotidiano da cidade, Carolina Peters Ferrão discute, em seu texto, os resultados da pesquisa que conduziu recentemente, sob orientação de Pedro, sobre a influência da tecnologia na vivência do tempo social. A intolerância na cidade, argumenta Carolina, parece derivada da vivência deste tempo rápido do ciberespaço -um tempo que não convida à reflexão e, devido a essa instantaneidade, constrói uma memória bastante particular à nossa época. É a partir de uma abordagem psicanalítica que Carolina constrói os argumentos que apresenta em seu capítulo.

Também a partir de uma abordagem sobre a participação da tecnologia na vivência da cidade Clarissa Sanfelice Rahmeier e Fernanda Lima discutem como a falta de representação no ambiente digital afeta o uso da cidade e a formação identitária. Clarissa e Fernanda argumentam que o ambiente digital possibilita a criação de memórias que sustentam mapas mentais a partir dos quais percebemos e interagimos com as coisas e pessoas da cidade. A partir de uma pesquisa conduzida por Fernanda sob a orientação de Clarissa, as autoras exploram a formação e reforço de estereótipos no ambiente virtual e propõem que o direito à cidade é diretamente relacionado à construção da memória, hoje tão mediada pelo digital.

Trazendo para o livro uma perspectiva histórica norteada por um olhar antropológico sobre a construção da memória, Fred Lucio problematiza o mito fundador do Dia Internacional da Mulher. Fred discute como negacionismo e Fake News fomentam a perpetuação de uma memória e história distorcidas na suposta era da informação e disseminação do conhecimento. O embate ideológico entre capitalistas e comunistas é o pano de fundo que motiva essa construção póstuma de uma memória comemorativa mundialmente guardada. Uma visão crítica sobre a construção da memória que se quer preservar é também oferecida por Paulo Ramirez ao tratar sobre a fotografia na era da internet. A efemeridade daquilo que se quer perpetuar por meio de postagens nos meios digitais é o centro da discussão de Paulo, que explora a contradição entre perenidade e esquecimento, fixidez e fluidez do sujeito e da memória nas redes sociais da Internet. Esse mesmo meio, ou mundo hiperconectado, é explorado como possibilidade emancipatória por Tatiana Amendola. Ao narrar sua experiência como mãe socióloga e criadora do Podcast Sociologia para crianças, Tatiana chama à nossa responsabilidade a inclusão da criança no pensar a cidade: um manifesto pela vivência plena do senso de alteridade, comunidade e respeito e pela construção de um futuro melhor.

Em uma discussão atual, mas ancorada em fatos do início do século XX, Leslie Marko retoma sua pesquisa de doutorado para falar sobre resistência. Em um texto sensível e forte, Leslie resgata a trajetória de Sami Feder em campos de concentração nazifascistas. Por meio do teatro, da música, da literatura e da poesia, Feder buscava, nas condições mais adversas colocadas ao humano, o exercício ético do acolhimento coletivo e da cidadania, aspectos tão caros e necessários à nossa vivência na cidade em pleno século XXI. Aos desenhar a memória do percurso de Feder e de sua própria pesquisa, Leslie traz muito da história e um pouco de si mesma; mais que isso, seu texto dá voz ao passado e um espelho à sociedade racional do presente. Partindo também de experiências singulares próprias, Flávia Feitosa e Mariana Malvezzi abordam as possibilidades de uma vivência verdadeiramente emancipatória na cidade contemporânea. Com delicadeza e atenção, Flávia e Mariana percebem a construção de narrativas identitárias como formas de construção do sujeito e de sua emancipação. É através do registro de memória de Michel, na Europa, e de Maria, no Brasil, duas pessoas que vivenciam trajetórias completamente diferentes, que o capítulo propõe entender como as narrativas pessoais e a reconstrução histórica por elas viabilizadas geram sentido, pertencimento e, finalmente, emancipação.

            A memória também é discutida aqui a partir dos estudos da neurociência. Em seu texto sobre a memória em tempos de acelerado desenvolvimento tecnológico, Vanessa Clarizia discute o processo de armazenamento de informações e de evocação de memória em um ambiente carregado de estímulos como o da sociedade em que vivemos. Marcada pela presença massiva da Internet, nossa cada vez mais reduzida recorrência ao processamento elaborativo pode estar comprometendo a capacidade de memorizar, de analisar criticamente e de refletir. Encontrar um ponto de equilíbrio que envolva o uso da internet, não superficialize o conhecimento e funcione como uma ponte para o futuro é um desafio de nosso tempo.

            Encerrando este volume está o capítulo de Walfredo Campos sobre o habitus universitário. Tendo como foco a vivência universitária, o autor discute diversos temas que circundam a formação do sujeito na cidade e, mais especificamente, do jovem que, como num rito de passagem para a vida de trabalhador adulto, passa a frequentar instituições de ensino superior do Brasil. É através do conceito proposto Bourdieu que Walfredo aborda a memória social na sociedade em que vivemos.

Assim como no primeiro livro, preservamos, nos capítulos aqui compartilhados, a individualidade de abordagem e o estilo de escrita de cada um. Mesmo que nossa reflexão tenha sido em grande medida inspirada e até mesmo transformada pelas nossas discussões em grupo, esta transformação não homogeneizou a produção, que se mantém em diálogo com o percurso de cada um de nós. Ante o fluxo avassalador de reescrita da história, percebemos a urgência da construção de uma memória que nos constitua, lembre e sustente em nossas identidades. Não estamos particularmente amedrontados pelo impacto da tecnologia na memória social e individual, nas nossas escolhas e práticas de convívio na cidade, mas reconhecemos seus efeitos e os problematizamos. Partimos de uma passagem famosa e recorrentemente citada do diálogo Fedro, de Platão, na qual o filósofo descreve a reação de um faraó ao se lhe apresentar uma inovação tecnológica: o livro. O faraó teria ficado horrorizado e considerado que aquela invenção destruiria a memória humana. A passagem ganha uma dimensão extremamente irônica num momento em que lamentamos a diminuição da leitura profunda e atenta e nos preocupamos com os malefícios que a tecnologia da informação pode estar causando à sociedade, à produção e preservação de sua memória. Como resistência e alternativa a esses possíveis malefícios e também como articulação entre tecnologia e memória, este segundo volume está, como o primeiro, sendo lançado num formato digital e gratuito. 

Segue nosso esforço para com a garantia do exercício da reflexão. Essa publicação respalda o respeito que temos para com nossos percursos individuais e para com a garantia de um ambiente de interlocução e acolhimento. Em meio a tantas adversidades, particulares ou coletivas, resistimos como uma esfera de confiança e discussão de um grupo de colegas que se tornam cada vez mais amigos. Que a diversidade que trazemos aqui possa ser alimentada com novos olhares, com um pensar crítico e, sempre, com a delicadeza da amizade que nos sustém.

Nosso primeiro livro, Existir na cidade: os contornos de si no (des)encontro com o outro  foi editado e impresso em 2018 pela Editora Zagodoni e encontra-se também disponível gratuitamente no site do Grupo: http://eueooutronacidade.weebly.com/

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