Por Pedro de Santi
Abro este texto com uma referência ao livro “O Blackberry do Hamlet” (Hamlet’s BlackBerry: Building a Good Life in the Digital Age, de William Powes, Editora Harpers, 2011). Soube do livro ao ler uma resenha da edição brasileira pela Editora Alaúde. Para manter a coerência com o próprio tema do livro, como li a resenha num tablet, instantaneamente baixei a edição digital e comecei a ler. De início, encontramos uma ironia que também vai em direção à tese do livro: em 2011, Blackberry era uma marca emblemática da conectividade; em apenas dois anos, ela soa ultrapassada. Sem querer, o autor tornou seu livro datado e confirmou suas teses.
O livro trabalha algumas questões muito presentes para nós. Avanços tecnológicos facilitam a vida e sempre tendem a ser usados para encurtar as distâncias entre as pessoas e, com este motor poderoso, seguirão sempre avançando. As novas tecnologias sempre encontram forte resistência entre alguns que consideram que, uma vez que elas resolvem e assumem problemas humanos, também acabam por dispensar e privar as pessoas daqueles mesmos recursos; neste sentido, o avanço tecnológico teria como custo certo empobrecimento de recursos mentais. Para tirar o melhor proveito das novas tecnologias, é imprescindível saber desligá-las ou desligar-se delas esporadicamente; assim, não nos tornamos dependentes e conseguimos manter o equilíbrio entre dedicar tempo e energia para o mundo externo e resguardar um tanto deles para o mundo interno.
Dentre tantos temas, escolho aqui destacar o do decadentismo. Ao fazemos uma análise crítica do mundo contemporâneo, é comum encontrarmos reações de recusa, mesmo entre nossos alunos com menos de 20 anos: “Este mundo está perdido!, onde é que isto vai parar? No meu tempo, era melhor, hoje as pessoas não lêem mais e estão sempre conectadas, elas não têm mais compromisso com nada, etc”. Sempre com um tom negativo e, quase sempre sem se incluírem: “eles” não sou eu.
É sempre difícil argumentar que não se deve confundir análise crítica com juízo de valor. Uma crítica não leva necessariamente a uma recusa. Mas ela pode gerar uma consciência sobre si e sobre o mundo difíceis de digerir. Não é raro que não gostemos do que vemos quando olhamos no espelho e acionemos a reação decadentista.
Tenho a impressão de que cada geração vê a seguinte sob o signo da decadência. Nós nos constituímos dentro de um ambiente cultural com suas referências e paradigmas. Na medida em que as balizas se movem na dinâmica social e temporal, vamos nos vendo com o desconforto de perder nossos pontos de acomodação. Se não compreendo o sentido do que os mais jovens fazem, posso logo presumir que não haja sentido, que eles sejam “insensatos”, que tenham “perdido” as referência que me são tão caras e constituem minha tradição. Meu medo por me sentir perdido se reverte em temor de que o mundo esteja perdido. E eu reajo, daí o termo ‘reacionário. Reajo tentando impor o resgate dos velhos e bons valores que são, afinal, simplesmente os meus valores. Em parte, este foi o caminho do Romantismo.
Numa relação professor/aluno, esta situação é recorrente. Considero importante afirmar que nossa função fundamental na transmissão de conhecimento, cultura e valores de convívio social não se confunde com o “retorno” à uma dada ordem anterior. Como aprendemos com Nietzsche, as diversas formas de decadentismo nutrem um forte desprezo pelo fluxo da vida e suas contingências.
Talvez a gente ganhe a noção perspectiva sobre o risco e engodo narcísico do decadentismo ao vermos gente mais nova caindo nele. Na semana passada, li o post de alguém com vinte e poucos anos lamentando, comovido, a aposentadoria de uma referencia cultural que lhe é cara: o “Seu Madruga”, do Chaves. Também já vi jovens lamentando a perda dos Mamonas assassinas, considerando que eles teriam revolucionado e salvo a música brasileira. As referências culturais importantes destes jovens soam como decadência cultural para mim. Quando alguém de 20 anos diz “no meu tempo”, considerando que este já passou, ganhamos a noção de nossa sobre-velhice. Que ela nos traga mais sabedoria e capacidade de suspeitarmos de nossos próprios ídolos. Eles, afinal, devem ter parecido um lixo para nossos avós e assim num recuo sucessivo. Com esta compreensão, que venha mais tolerância com as diferenças e respeito pelo novo.
Para concluir, o livro de Powers conta a reação de um imperador egípcio quando se apresentou a ele a invenção da escrita. Ele não só não se entusiasmou, como ficou preocupado: com essa história de escrever e registrar, as pessoas iriam se dispensar do trabalho de memorizar. A hoje saudosa atividade da leitura, já foi uma vilã aos olhos decadentistas de então.
Nossos filhos não lêem tanto quanto líamos mas, fala sério, se você tivesse um tablet e internet aos 15 anos (como eu, lá no milênio passado), o que você teria feito?