Fugir

Por Gianpaolo Dorigo, Professor do Anglo Vestibulares

Para o senso comum, fugir quase sempre é considerado um ato deplorável. O repúdio ao fugir me parece vir junto com a tendência de querer sempre manifestar uma coragem trivial – talvez como  expressão de uma “força” desejada. A meu ver, o senso comum acaba esvaziando o sentido do ato de fugir que, muitas vezes, pode manifestar nada menos que um gesto transcendente.

Para começar, tento diferenciar fugir de sair. O que diferencia um ato do outro ? A meu ver, sair dá ideia sobretudo de deslocamento. Mas o que faz esse deslocamento diferente do fugir ? Nos dois casos pode ser um deslocamento voluntário ou não, para longe ou para perto, tanto rápido quanto devagar. Em que circunstâncias uma saída passa a ser uma fuga ? Em outras palavras, do quê, exatamente, fugimos ?

Os gregos, com a perspicácia habitual, nos ajudam. A origem mais remota da palavra fugir vem de φεύγω (feugo), às vezes aparecendo como διαφεύγω (diafeugo), com o acréscimo da preposição δια- (dia-, através de, por meio de). Platão usa a expressão διαφεύγει με (diafeugei me), no sentido de “isso me escapa”, ou seja, algo que ignoro. Em Isócrates, há πολλά με διαφεύγεν (polla me diafeugen), que quer dizer “esqueci muitas coisas”. Esse passeio pelas formas originais do conceito de fugir nos leva a entender o que significa. Nos faz começar a descobrir do que fugimos. Na sua essência, fugir significa não pertencer mais ao pensamento, o que põe em jogo o esquecimento. Na fuga, lidamos com a memória, saímos de uma situação ou de algo que não queremos mais que faça parte de nosso pensamento. Será que esse algo é uma parte de nós? Quando fugimos, apagamos alguma coisa, criando assim um espaço em branco que pode ser construído talvez da forma que quisermos.

E é por isso que pode existir algo de transcendente em toda fuga. A fuga deve ser dramática, não existe fuga insidiosa ou discreta, pois esta se confunde com o mero desaparecimento. Um fuga não deve ser o fim, mas o início, pois quando fugimos nos reinventamos. A fuga significa fazer tábula rasa do passado, gerando a possibilidade de começar de novo, e é esse o sentido que aproxima o fugir da filosofia. Na filosofia devemos nos perguntar sobre as coisas que parecem óbvias, mas que descobrimos que não são: toda filosofia parte da fuga do senso comum, do mero entendimento das coisas ao nosso redor como dados.

Porém, às vezes pensamos estar fugindo quando simplesmente não enfrentamos. Pois há aqueles que fazem da fuga um modo de vida, e isso acaba impedindo a criação de qualquer coisa, ou mesmo a constituição de um eu. Nesses casos, no espaço em branco deixado pela fuga constrói-se um nada avassalador.

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