Fazer justiça com as próprias mãos: a passagem ao ato

Pedro de Santi

Mais do que o reaparecimento de manifestações na proximidade da Copa e do mês de junho, são chamativas e assustadoras as situações de explosão da violência em atos de linchamento perpetradas por pessoas comuns. Quando se revestem do formato “justiça feita com as próprias mãos”, elas ganham mais claramente o caráter de sintoma social.

A rigor, não se trata de um sintoma no sentido psicanalítico, mas de uma passagem ao ato. No sintoma, há a expressão simbólica de um conflito entre forças; na passagem ao ato, assinala-se um limite do recurso simbólico. As irrupções de violência bruta denunciam uma insuficiência nos recursos de representação. A potência do que busca expressão não encontra caminho e explode. Talvez este modelo psicológico possa ajudar a pensar o fenômeno social.

A expressão ‘justiça feita pelas próprias mãos’ indica a falha da crença numa justiça superior, institucional e do Estado. Em que pese a diferença enorme entre um ato que eclode espontaneamente ou em algo planejado; e a diferença entre linchamentos e o que é chamado de ataques a símbolos do capitalismo, ou a concessionárias de automóveis de marcas que financiam a copa.

No ano passado, em boa medida foram a falta de preparo e a tradição repressora que levaram a polícia a combater os manifestantes com violência. Foi por reação à violência policial que as manifestações tiveram um salto de adesão que não voltaram a ter, ao menos por enquanto. E foi, em parte, pela violência dos Blackblocs que a população geral de afastou das manifestações.

De toda a forma, foi notável que os manifestantes tenham recusado a adesão a qualquer bandeira ou liderança partidária. As causas eram relativamente difusas e quando alguém tentava encampar o movimento, era repudiado. Quer fosse de direita, esquerda, conservador ou revolucionário.

À época, considerei esta característica positiva, mas com o avanço das eclosões de barbárie, pergunto-me se isto não compõe mesmo um quadro de hiato e dissociação entre as forças populares e aqueles que deveriam nos representar: o Estado democrático, os partidos políticos, a justiça e mesmo a imprensa. Haveria então uma crise da representatividade e da representabilidade.

Há uma batalha midiática pelo controle da significação dos acontecimentos. Na última quinta-feira, por exemplo, quando aconteceram inúmeras manifestações. A leitura “pró governo federal” quis impor a versão do “fracasso das manifestações” por sua adesão ter sido menor do que a daquelas do ano passado. Mais que uma leitura, trata-se da tentativa de impor uma realidade: a desmobilização de futuras manifestações. Numa leitura “anti governo federal”, as manifestações, ainda que pequenas, manifestam a insatisfação geral e conseguem criar um grande desconforto aos demais (trânsito, depredações, obstrução de vias, etc.); desconforto que acabará por entrar na conta do governo. Aqui também se quer criar impor uma realidade ao se colocar lenha na fogueira.

Meu ponto neste texto é marcar que talvez nenhuma das leituras acima passe perto de representar os acontecimentos. Assim como nenhum dos nossos partidos políticos ou candidatos a governo federal ou estadual para as eleições de 2014 parecem passar perto de serem líderes capazes de dar voz às demandas das pessoas.

Aliás, por falar em cisão, nesta semana foi emblemática a foto de um candidato num jatinho. Sorridente e em campanha eleitoral ao lado da família, enquanto em sua cidade o couro comia solto, numa greve da polícia que entregou a cidade ao caos. A foto postada em mídia social foi retirada depois de muitos apontarem a “falta de senso de noção” da imagem.

Se esta dissociação seguir existindo, se os impulsos e demandas mais primitivos não conseguem ganhar forma ou representação, eles seguirão se impondo de maneira bruta e violenta. E se resolvendo de forma dissociada, com a justiça sendo feita pelo arbítrio de cada mão.

Enquanto no andar de cima, aqueles a quem delegamos a função de nos representar se perdem em discursos auto-referentes e paranóicos, achando que as coisas só acontecem contra ou a favor deles.

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