Facebook também é cultura

Pedro de Santi

“Bactérias num meio é cultura” é o último verso da canção ‘Cultura’, de Arnaldo Antunes. Costumamos usar a expressão ‘viral’ para informações ou posts que se disseminam com grande velocidade pela internet, mas as últimas eleições trouxeram outro sentido para esta expressão: o de doença, toxidade.

A mídia social se tornou um meio privilegiado para uma cultura da intolerância e do ódio. Todos que frequentamos estes meios sentimos que lá acontecia algo que ampliava muitíssimo o que se via nas ruas.

Enquanto neste sábado uma passeata patética desfilava pela Avenida Paulista com cartazes pedindo a derrubada do governo recém eleito democraticamente, o Facebook parecia evidenciar uma guerra generalizada no país. A tristeza sentida por grande parte dos brasileiros que viram a vitória de alguém que não aprovavam foi expressa, entre outras coisas, em mudanças de foto de perfil. Em rede, a expressão desta tristeza sofreu forte policiamento: ela pareceu exagerada e ridícula àqueles que também legitimamente comemoravam a vitória de seu lado.

Houve muita expressão pura de radicalismo e o reativo patrulhamento, igualmente radical.

Nas últimas duas semanas anteriores à eleição, suspendi minha confiança em qualquer coisa que se apresentasse como ‘informação’, tal o grau de mentira e delírio em circulação. O exemplo paradigmático veio na manhã da eleição: li um post de alguém próximo e inteligente dizendo que o PSDB havia envenenado o doleiro delator para incriminar o PT… Em seguida, a boataria estava por todo o lado.

Penso que não haja dúvidas de que esta eleição evidenciou cisões reais entre nós, assim como o crescimento de um conservadorismo fascista, já observado por muitos, inclusive por mim neste espaço.   As pregações de racismo e separatismo foram as mais equivocadas expressões de uma intolerância e ignorância ancestrais. Não devemos reduzir tudo à inconsequência e gratuidade dos posts. Precisamos atentar para os desenhos e tendências políticas em ação. Muitos observaram que a “divisão do país” não foi criada pelas campanhas ou redes sociais: ela sempre existiu. De minha parte, insisto em considerar que as diferenças entre os lados é menor do que cada um gosta de acreditar.

Mas também é preciso observar que a decantada dissolução entre as esferas pública e privada imposta pelas mídias sociais expandiu graus de atrito a níveis maiores do que os do dia a dia em outras formas de convívio.

O que postamos em nossos perfis pessoais é ao mesmo tempo público, ao ser lançado no feed de notícias. Quando abrimos nosso feed e lemos os posts dos outros, podemos nos sentir invadidos e ofendidos por eles. Em geral, o nível de posts é tão inútil e vazio que não nos importamos. Mas quando se toca o mais importante em termos de ideias e afetos, estamos todos em carne viva e a simples existência do outro nos sensibiliza e faz sentir atacados em nosso espaço. E então reagimos e a bomba explode. As fronteiras entre espaços privados está suspensa em redes sociais, mas nossas defesas identitárias narcísicas ainda não se adaptaram a isto.

Amigos bloquearam amigos, parentes bloquearam parentes, ao menos provisoriamente. Não foi de todo ruim dar uma enxugada naquela massa que de fato não mereceria o nome de ‘amigo’. Foi como uma grande versão daqueles jantares familiares de natal onde a proximidade e o nível etílico fazem com que certas verdades inconvenientes sejam ditas e barracos sejam armados. Distendidos os afetos hostis e as verdades usualmente contidos, os afetos amorosos costumam retomar o controle e pode haver uma reconciliação; ou não. Reunião de família também é cultura.

Aprendemos que a cultura bacteriana das redes pode passar ao ato e supurar em direção às ruas pontualmente, mas estas irrupções e pústulas não possuem lastro real. Ao menos até aqui, o que tem sido incubado em rede não representa ou atinge expressivamente a sociedade como um todo. Talvez isto ajude a pensar retroativamente as manifestações agudas e sem sequência ou consequência do ano passado.

O governo eleito já deve estar com saudades do mundo virtual da campanha. A vitória contra os adversários foi difícil e por uma diferença relativamente pequena mas, agora, vem a realidade das demandas sociais, do Mercado e, pior, dos aliados.

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