Por Pedro de Santi
“Tudo, naqueles anos, era diferente, até o sabor dos sonhos. (Talvez eu nunca tenha sido inteiramente feliz, mas se sabe que a desventura requer paraísos perdidos).” Deutsches Requiem, em “O Aleph”.
Gosto muito da passagem acima do conto de Jorge Luis Borges. Ela se coloca no cruzamento entre a memória e a fantasia e de frente para o peso do presente. Para muitas pessoas, o fim do ano funciona como um corte. Passamos o ano olhando para ele como norte e sentido, ansiando pelo descanso das férias. Naturalmente, nada de sobrenatural acontece na passagem do último dia de dezembro e o primeiro de janeiro. Cada instante do calendário é igualmente único ou banal. Trata-se de uma convenção, mas nossa mente se acomoda bem a estes marcos simbólicos, e em torno deles, organiza seus projetos e balanços. Caminhando erraticamente pela vida, buscamos por pontos de referência.
No ano passado, o dia 21 de dezembro vinha sendo esperado como o “fim do mundo no calendário Maia”. Aquela fantasia era um samba do criolo doido mitológico. O preciso calendário Maia contava os dias até aquela data, mas não havia noção de fim do mundo envolvida. Foi por uma mistura com o mito do apocalipse cristão que se forjou a espera pelo fim dos dias. Numa entrevista que concedi á época, sugeri que a noção de fim do mundo tem valor de tabu: aquilo que é mais temido e desejado, ao mesmo tempo. Num mundo de incertezas e de coisas inacabadas (inacabáveis), a ideia de fim do mundo pode se revestir de alívio e redenção.
Cada fim de ano é um pouco como um pequeno fim do mundo. A adrenalina e a agitação crescem, os encontros com amigos e parentes- além dos gastos- explodem. O trânsito fica infernal e entrar em lojas ou caminhar pelas ruas mais enfeitadas vira um martírio. Aguardamos pela grande ressaca do dia 26 de dezembro, mais um soluço e estamos em janeiro. Cidade fica momentaneamente mais calma, como deveria ser no geral.
Cada um carrega – em maior ou menor grau, com maior ou menor consciência- uma carga de dívidas simbólicas. Em determinados momentos, colocamo-nos na situação de prestar contas por elas; ora com alívio, ora com o peso de estarmos presos a cadeias repetitivas que não nos permitem nos desembaraçarmos delas. Cada marco de passagem do tempo funciona como um espelho a nos confrontar com o jogo de identidade e diferença. Repetições terríveis se reafirmam com o peso de um destino, marcas da passagem do tempo (crescimento, envelhecimento) se impõem.
Um marco temporal como o do fim do ano nos coloca em confronto com os planos anteriores: tudo o que gostaríamos de ter mudado e não mudamos, ou só o fizemos parcialmente. E a passagem por um marco nos coloca na situação de traduzir desde o presente aquilo que instantaneamente passa a ser lido como passado. Aqui entra a beleza da passagem de Borges que citei acima: a nossa memória é capaz de nos pregar peças incríveis. Ela não é um arquivo de computador que acumula de forma objetiva e curta os acontecimentos. A percepção já é subjetiva, e a memória realiza um trabalho constante de reacomodação de suas marcas.
Num belíssimo texto de 1899, “As recordações encobridoras”, Freud propõe a ideia de que quando nos lembramos de algo, não buscamos a lembrança pronta em algum lugar, mas forjamos naquele dado momento a recordação. A recordação é feita numa dinâmica composta pelo contexto presente de evocação e as marcas de memórias que guardamos. Em outras palavras, em cada presente, reconstruímos nosso passado. Trata-se de um jogo de forças: é claro que o modo como vivemos o presente é influenciado por nossa história, mas o contexto de evocação opera também ativamente na formação das recordações. Assim, podemos recriar passados ao longo da vida. Esta possibilidade é uma das justificativas do interesse de uma psicoterapia, por exemplo, mas levar esta hipótese a sério nos lança num relativo exílio com relação a confiabilidade da memória.
Mesmo que a memória que temos de nosso passado não tenha correspondência factual com as coisas ocorridas (quando confrontadas com outros participantes dos acontecimentos, por exemplo) isto em nada diminui a eficácia da fantasia assim resultante. A isto Freud chamou “realidade psíquica”. Vivemos no mundo e nos dispomos nele de acordo com a construção de nossa história que pudemos fazer até aquele dado momento.
Ainda assim, se a memória pode nos pregar a peça de idealizar o passado constantemente, desqualificando o presente, ela permite a transfiguração de tudo aquilo que podemos absorver e processar. Nas ressignificações, novos projetos podem ser sonhados, algumas velhas feridas podem se tornar mais distantes, sempre um pouco menos doloridas, mas sempre lá.
Outro psicanalista, Jean Laplanche, propõe a imagem de uma espiral para pensarmos a relação entre identidade e diferença. A espiral evoca a ideia de voltas cada vez mais amplas, mas sempre remetidas a um mesmo centro. Num funcionamento neurótico, o disco está riscado e, de fato, apenas repetimos reiteradamente a mesma história de relacionamento em relacionamento, de emprego em emprego. Mas se o movimento é mais solto, graças à maturidade ou a uma boa análise, a cada volta nos distanciamos relativamente do núcleo e expandimos nosso alcance, ainda que sempre referidos a ele.
E a você, eventual leitor, agradeço pela companhia até aqui. Meus bons votos ateus aos seus.