Pedro de Santi
No último dia 8 de março, foi o dia internacional da mulher. Uma série de eventos marcam a data, naturalmente. Como fui chamado a participar de um evento a respeito na ESPM, deixo algumas ideias.
Penso que o simples fato de existir uma semana ou dia dedicado à mulher já mostra uma ambivalência. De um lado, marca-se a luta por direitos ainda não conquistados: tanto no que diz respeito à igualdade no campo jurídico e de trabalho; como na eterna questão da violência contra a mulher (com grande frequência, violência sexual). De outro lado, a própria existência da data mantém a ideia de discriminação, com o risco da ostentação de um discurso de vitimização. No último fim de semana, vimos muitas comemorações positivas do valor na feminilidade, mas, em geral, a comemoração de dias especiais denota um caráter de inclusão incompleta no campo da cidadania. Neste sentido, espero pelo dia em que não seja mais necessário que se comemore este dia. Assim como espero que um dia não seja mais necessário o sistema de cotas raciais, por exemplo.
O convite para participar num evento da faculdade foi feito por um grupo de alunas que faz um PGE especificamente sobre a representação da mulher na publicidade. Elas identificam que a publicidade se move dentro de um imaginário convencional sobre a mulher, com características chamativas: em primeiro lugar, este imaginário não corresponde à realidade da mulher brasileira contemporânea; em segundo, esta mesma mulher contemporânea parece também ainda trazer em si mesma aquele imaginário. Caso haja uma nova realidade, ela ainda não ganhou uma nova representação, ao menos de forma generalizada.
Dentre tantos marcos da emancipação da mulher à condição de sujeito, destaco um, na sequência de outras importantes conquistas emancipatórias. É um fenômeno social muito recente e ainda restrito a relativamente poucos ambientes sociais, mas já se concede à mulher o direito de desejar ou não ser mãe. Todo o nosso imaginário cultural associa a mulher à terra, ao corpo, ao pecado, à geração da vida. Uma mulher só seria plenamente mulher quando se tornasse mãe. Até bem pouco tempo (ou ainda hoje), se uma mulher dissesse que não desejava ser mãe, logo se pensava que ela na realidade o desejava, mas reprimia este desejo, tomado como intrínseco, natural, instintivo. Mas não há área melhor para mostrar o quanto nós, humanos, nos afastamos dos instintos quanto a que diz respeito aos nossos desejos. Toda a variedade e singularidade humana ganha expressão aí.
Compreender que uma mulher possa não desejar ter filhos é entender que um sujeito não se reduz à sua condição biológica. E é entender também que homens e mulheres são igualmente incompletos e da mesma coisa (castração simbólica, diria a psicanálise). A maior parte de nós sente-se constantemente em falta, incompletos e inquietos. Se um filho pode muitas vezes ser o objeto de desejo que, na fantasia de muitas mulheres, pode vir a preenchê-las (fantasia de completude fadada ao fracasso, como de resto, todas são), ele não é o único objeto a poder preencher imaginariamente esta falta. Uma mulher contemporânea pode encontrar um lugar para si fora das relações de parentesco: mãe, esposa, filha de alguém. Isto explica o papel que tiveram na emancipação feminina o divórcio, a pílula anticoncepcional e o direito ao trabalho com remuneração equiparada à do homem.
E se uma mulher sem filhos não encontrar satisfação plena em seu trabalho, por exemplo, não será porque “no fundo” ela queria mesmo era ter um filho. As mulheres que são mães não estão assim tão exultantes. Desde a realização importantíssima e inigualável de ter um filho, elas também se reencontram com sua incompletude. Ou surtam, mas esta é outra história.
Com a consolidação progressiva da equiparação da condição de sujeito entre homens e mulheres, vemos também alguns refluxos e reavaliações vindas das próprias mulheres. Muitas de minhas pacientes são mulheres assim emancipadas, casadas ou não, com filhos ou não. Sentem então o que acompanha a condição de sujeito: responsabilidade e solidão. E então, na calada do consultório confessam por vezes terem saudade de um homem provedor (educado, ao menos). Pois a transformação da feminilidade não se deu sozinha; a masculinidade também esteve e está em crise. Algumas de minhas pacientes contam que ressignificam hoje a posição de suas mães e avós. O que parecia simples passividade ganha certo ar de inteligência histérica: fazer-se de objeto para controlar aqueles à sua volta.
Lembro-me de uma história interessante contada por uma paciente duas vezes ao longo de sua análise. A cada vez, a história se revestiu de uma significação distinta. A avó lhe disse um dia que, ao longo de seu casamento, por vezes perguntava ao marido: “Vai me usar hoje?”. Na primeira vez que a história veio à tona, a pergunta trazia o peso da submissão à condição de objeto ante o desejo do marido. Algum tempo de análise depois, a mesma história voltou mas, desta vez, com muito humor e prazer minha paciente entendia que a avó estava mesmo é demandando sexo ao avô. A relação entre dominador e dominado é mais complexa do que pode parecer à primeira vista.
A comemoração do dia da mulher ainda continuará sendo necessária enquanto forças conservadoras persistirem em tentar voltar no tempo. Como no ano passado, quando se discutiu um Estatuto do nascituro (um dossiê foi feito pelo Nota Alta ESPM a respeito) no qual os embriões tinham estatuto de sujeito desde a concepção; em caso de gravidez indesejada derivada de um estupro, até mesmo o estuprador teria estatuto de sujeito, uma vez que deveria assumir a paternidade e pagar pensão. Só quem não tinha sua condição de sujeito reconhecida era a mulher, cujo desejo de prosseguir ou não com a gravidez em qualquer circunstância não tinha lugar: ela voltaria a ser reduzida a uma mala biológica.