Cura gay. Implicações vistas desde uma perspectiva psicanalítica

Por Pedro de Santi
No último fim de semana, aconteceu em São Paulo um nova edição da Parada Gay. Para esta semana, está anunciada a apresentação em Brasília de um projeto chamado informalmente ‘cura gay’. Na semana, passada, assistimos pela mídia algumas cenas de casamentos entre gays no Brasil, assim como um protesto que reuniu milhares de pessoas contra a legalização já aprovada desta mesma possibilidade na França.
Toda a discussão está muito quente. Ela envolve inúmeras questões e definições: sobre o que constitui o gênero de alguém; sobre o conceito de doença; o que define uma família? Princípios de origem religiosa, legítima para muitos, podem ser evocados para regular a vida de todos num estado definido como laico? Será que parte da movimentação já envolve estratégias de comunicação visando as eleições de 2014?
Com esta situação complexa ante nós, alguns professores da ESPM e o Nota Alta ESPM consideramos a oportunidade interessante para fazer uma série de posts em torno desta temática, da perspectiva de diversas disciplinas. Com o mote inicial da “cura gay”, começo a série da perspectiva da psicologia. Além de professor, sou psicoterapeuta de orientação psicanalítica há 25 anos. Carlos Frederico Lucio (antropologia), Denise Fabretti (direito), Gisele Jordão (comunicação) e quem sabe outros escreverão na sequência.
A expressão ‘cura gay’ traz embutidas concepções segundo as quais ‘cura’ significa um tratamento para a remoção e correção de algo considerado doença ou errado, neste caso, ser ‘gay’.
Relacionar o repúdio à homossexualidade a um termo como ‘terapia’ evoca, a qualquer pessoa que estude ciências humanas, um velho casamento entre religião e discurso científico no século XIX. Com a relativa perda de poder da Igreja na regulação da vida ao longo da Modernidade, muitos preceitos religiosos reapareceram então (como ora o fazem) disfarçados de ciência. O ‘pecado’ foi travestido em ‘faz mal à saúde’ como regulador das ações. Assim, por exemplo, o século XIX assistiu ao catalogamento de diversos desvios sexuais: as perversões. Tendo como premissa a sustentação em definições biológicas, derivou-se equivocadamente a ideia de que os comportamentos sexuais deveriam manter coerência com o destino dos órgãos sexuais. Definiu-se que normal é o uso de comportamentos que levem à reprodução, outros usos seriam perversão, um desvio antinatural, uma degeneração.
Daí a formulação de que seriam perversões, homossexualidade, onanismo (masturbação), sadismo, masoquismo, pedofilia, etc. Note-se que todos estes são incluídos num mesmo grupo, bastante amplo e desigual. Mas, sobretudo, efetuou-se uma derivação violenta. Para resumir, passou-se a considerar que alguém definido como pervertido (comportamento sexual desviante da norma) seria também perverso (moralmente mau). Um gigantesco campo de exclusão e repressão passou a ser sustentado num uso distorcido da biologia e da ciência.
Foi preciso o trabalho fundamental de Sigmund Freud- Três ensaios sobre a sexualidade (1905)- para revelar o equívoco daquele raciocínio e o quanto ele gerava sofrimento neurótico e servia exclusivamente para mascarar dogmas religiosos. Em suma, Freud pede então que simplesmente se observe de perto a diversidade das manifestações do desejo humano, de cultura para cultura, época para época, pessoas para pessoa, etc. O que se evidencia é que a sexualidade humana toma as mais variadas formas e não é orientada pela reprodução, mas pela busca do prazer. Pense-se na enorme diversidade de manifestações do desejo e da vida sexual mesmo entre aqueles que são tomados como normais: os heterossexuais. A heterossexualidade não é uma coisa só e certamente não é vivida da mesma forma. Que um homem deseje uma mulher e que uma mulher deseje um homem ainda informa muito pouco sobre o que cada um faz ou fantasia fazer com o outro. Não há um destino ou forma universal a ser atingido e cumprido no humano. Se o uso de um órgão corporal devesse ser definido pelo seu destino biológico, não deveríamos usar nossas bocas para beijar, entre outras coisas. Revelado o erro daquela transposição, desaparece o critério absoluto para se definir normal ou anormal. Normal passa a ser o que é mais comum, contingente a determinado grupo.
Ainda com Freud, na combinação entre o que tragamos como condição biológica e o encontro com o ambiente simbólico (afetivo e cultural) que nos recebe no mundo, constituímos ao longo da primeira infância uma condição singular e específica de desejo e realização. De um lado, não parece haver um destino prévio à espera; de outro, uma vez que esta condição vai se consolidando, já parece improvável que ela possa mudar na vida adulta. Ser hetero, homo, bi, a, pluri ou outras definições de gênero não são escolha a ser julgada, não implicam intrinsecamente falhas morais e, certamente, não configuram uma doença a ser tratada. Isto independe de que se dê ênfase aos fatores genéticos ou ambientais na definição de gênero.
Alguns defensores do projeto da cura gay evocam um psicologismo tosco ao afirmar “estudos científicos provam que” os homossexuais teriam sofrido abuso sexual na infância. É uma forma primária de tentar justificar a ideia de doença causada por um trauma. Mas, esta “teoria” só parece contemplar um homem que quando criança teria sido abusado por outro. É tudo tão primário que revela outro dado interessante: aparentemente, só há preocupação e “teorização” com a homossexualidade masculina. É o suprassumo do machismo.
Como os primeiros protestos contra o projeto da cura gay apontavam seu teor autoritário, seus defensores passaram a dizer que não se pretende um tratamento compulsório (impositivo), mas só o atendimento daqueles que sofressem com sua condição e buscassem voluntariamente a cura da homossexualidade. Mas, mesmo esta definição não funciona na ética do psicoterapeuta. Afinal, quase todas as pessoas que procuram terapia o fazem consumidas por um descontentamento sofrido com suas próprias condições, elas gostariam de ser outras pessoas, odeiam o que vêem quando se olham no espelho. Em grande medida, o sofrimento neurótico é causado especificamente por isto: a luta contra os próprios desejos, vividos como errados e culposos. Muitas vezes, a demanda imediata destes pacientes é exatamente a de terem extirpados seus desejos para que pudessem se sentir mais “normais”, aceitáveis, sem conflito. O sofrimento humano não tem barreiras ou escalas de gênero.
Numa perspectiva mais tradicional, uma psicoterapia teria a finalidade de restituir um estado perdido de equilíbrio e normalidade. Com a perspectiva de que não haja princípios naturais e a-históricos que regulem a vida humana, desaparece a ideia de que haja uma finalidade normativa e regulatória no trabalho psicoterapêutico. Como psicoterapeutas, sabemos que o trabalho consiste exatamente em implicar o sujeito em sua história e desejos, não para exorcizá-los mas, muito pelo contrário, para apropriar-se deles. Analisa-se a vergonha de ser, para que possa advir a possibilidade de ser-se o que se é. Há que se fazer um longo e doloroso trabalho de luto pelos ideais aos quais nos apegávamos, mas que nos esmagavam e nos levavam a reprimir nossos desejos: nem conseguíamos corresponder aos nossos ideais, nem conseguíamos alcançar a realização de nossos desejos reais.
Em português, o termo ‘cura’ tem a conotação de remoção definitiva de doença, mas em espanhol ou francês, ele conota tratamento e amadurecimento. É com estes últimos sentidos que trabalhamos.
A procura por retirar o desejo homossexual de alguém só poderia ter como resultado ocultá-lo, numa repressão violenta, com todos os custos disto: infelicidade maior e sintomas daquela repressão. O Conselho Federal de Psicologia prontamente se colocou contra o projeto da cura gay, considerando-o contrário à ética profissional.
Quando vejo alguém muito perturbado e incomodado ante as condições de vida de outra pessoa, tendo a pensar que indica-se terapia com clareza à primeira, mais que à segunda. O que estaria implicado no anseio por impor o próprio modo de ser a outros: a ambição de ser bom e salvar o outro do erro? a necessidade de continuamente provar a si mesmo que se está certo? O medo do contágio?
Há alguns anos, recebi em meu consultório uma mulher muito angustiada para uma primeira entrevista psicoterápica. Assim que se sentou, ela avisou que vinha para falar sobre sua filha, a quem esperava que eu viesse a atender. O que preocupou à mãe foi que a filha de vinte e poucos anos apresentara a ela uma namorada no fim se semana anterior. A mãe esperava poder curar a filha se sua homossexualidade recém manifesta e disse ter ficado horrorizada, repudiado absolutamente aquela manifestação e, mesmo, dito que não a considerava mais sua filha.
Tendo a ouvido por quase uma hora, disse a ela que considerava que a pessoa certa havia vindo à consulta; eu podia perceber seu sofrimento, sua decepção com relação ao que sonhara para sua filha e a preocupação pelas dificuldades que ela teria que enfrentar socialmente. De outro lado, até onde compreendi, a filha parecia estar bem. Ela conseguira descobrir seu desejo, bancar para si própria esta descoberta, buscar caminhos para sua realização pessoal estabelecendo um relacionamento com outra pessoa e, sobretudo, conseguiu afirmar-se ante sua família. Soa bem. A mulher que me procurou não voltou para uma segunda conversa. Ela possuía a primeira condição imprescindível para a entrada em análise- o sofrimento- mas não a segunda: a capacidade de se implicar naquele sofrimento e se colocar em questão.
Por fim, o projeto da cura gay parece esdrúxulo em si, mas parece estar em consonância com outros projetos atuais de higienização das diferenças e singularidades humanas. Pense-se no policiamento da liberdade de expressão pelo ‘politicamente correto’ ou na tendência a tomar como ‘síndrome’ a ser medicada todo comportamento espontâneo, crise pessoal e o que quer que esteja fora do centro da curva normal. A aniquilação das diferenças não soa nada humano ou caridoso.

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