Conectividade e Compartilhamento Implicações para a constituição subjetiva – Parte I

Por Pedro de Santi

Neste artigo em três partes discuto determinados aspectos de nossa experiência atual com a conectividade. A partir da lógica do ‘compartilhamento’, (característica do Facebook, mas não só dele) e de como nos relacionamos com redes sociais e armazenamos dados em meios virtuais, procuro derivar mecanismos psíquicos envolvidos estimulados. Eles são relativos à confiança, dependência e perda da experiência de interioridade privada. A situação é ambivalente: podemos ver recursos psicológicos novos e interessantes sendo criados e, ao mesmo tempo, a perda de condições que costumamos tomar como fundamentais para a constituição subjetiva.

Desenvolvo cada um das três partes do artigo a partir de três filmes de curta metragem produzidos pela empresa de mobile marketing Pontomobi e a agência de publicidade JWT, lançados no dia 6 de junho de 2013, para mapear o comportamento do consumidor móvel no Brasil. Os filmes são muito bem feitos e mostram com clareza nossa relação atual com a conectividade.

As molduras ignoradas dentro das quais nos movemos.

O vídeo “A era do desapego” (7:19 min.) é aquele que me pareceu mais rico à análise. Nele, é apresentada a marca da ‘liberdade’ proporcionada pela possibilidade de armazenamento de informações (fotos, textos, músicas, etc) num ambiente online, uma nuvem que dispensa um disco de armazenamento à mão. De qualquer lugar e com qualquer dispositivo é possível acessar as informações. A dimensão libertária é evidente: virtualmente, todos os seus livros, arquivos e arquivos de mídia deixam de ocupar espaço físico e passam a estar disponíveis em qualquer lugar ou momento. Aliás, não só os seus arquivos, mas acervos de bibliotecas e museus de todo o mundo. Não é necessário sequer que você leve sua plataforma (notebook, tablet, smartphone). A imagem arcaica que me ocorre é a daqueles casos em que pessoas esqueciam a única cópia de sua tese ou do original de seu livro num taxi e os perdiam irremediavelmente. Esta experiência aterrorizante pode estar superada, hoje.

Mas a liberdade celebrada pelo vídeo ignora e, por isto, torna gritante a dimensão alienante do processo. Em nenhum momento se coloca a questão da absoluta dependência e confiança nas condições de possibilidade do processo: dispositivos e aplicativos atualizados disponíveis de acesso, provedores de acesso e armazenamento, para nem mencionar a eletricidade para carregar as baterias (apagões existem). Tudo leva a crer que armazenar dados na nuvem seja tecnicamente mais seguro que armazenar num disco rígido ou pendrive; estes podem queimar ou travar, afinal. Mas quem é o fiador da disponibilidade da nuvem, ou da garantia de privacidade sobre seus dados?

Quero aqui evidenciar que sob a experiência imediata de liberdade, cria-se uma condição de dependência absoluta e renúncia à privacidade, sem que isto seja sequer claramente consciente. Ao depositarmos nossas informações, delegamos a empresas particulares- com seus interesses comerciais- nosso patrimônio cultural e passamos a depender delas como seus guardiães.

Ocasionalmente, a estrutura invisível subjacente ao nosso uso cotidiano da internet se evidencia. Há poucos meses, tornou-se público um processo de espionagem sistemática do Sistema Nacional de Segurança (NSA) dos Estados Unidos. Parte das análises apontavam surpresa e ofensa; outra parte se perguntava se as pessoas não sabiam ou imaginavam que a movimentação e telefônica pudesse ser controlada, quer como medida estatal de segurança, quer como instrumento de Marketing.

No Brasil, recorrentemente recebemos notícias de que cadastros pessoais feitos para determinadas instituições (inclusive governamentais) são disponibilizados para uso mercadológico.

A ilusão da liberdade e privacidade na movimentação pela internet torna-se ainda mais próxima no dia a dia das redes sociais. Cada um de nós recebe a cada instante publicidade específica relativa aos nossos hábitos de consumo, aos sites pelos quais passeamos ou pesquisas que fazemos. Desde a aquisição do Orkut pelo Google, gradativamente temos tomado consciência de que nossa movimentação pela rede se torna “cadastro de consumidor”. De alguma forma, parece que este uso mercadológico de nossa vida virtual nos causa menor desconforto que o monitoramento governamental. O que parece um tanto estranho; uma vez que, em última instância, os governos devem mais satisfações à sociedade que empresas particulares.

Talvez tomemos o poder público como inimigo, por estar associado à lei e aos nossos deveres; enquanto nos rendemos com relação às ações de marketing, tomando-os como cúmplices em nosso anseio por acesso ao consumo e prazer.

De toda a maneira, quando a estrutura da moldura que nos enquadra se torna evidente, reagimos e protestamos, mas basta que ela desapareça para que nos reacomodemos. Por isto, no título desta parte disse que as molduras são ignoradas, não desconhecidas.

Em contrapartida, a consciência do monitoramento nos entrega a uma experiência paranóica, de persecutoriedade. É como se entrássemos em contato com o Big Brother do Admirável mundo novo, de Aldous Huxley. A percepção de um poder invisível que irá nos usar em função de seus interesses, sem que alguma instância de controle intermedeie esta relação, nos deixa entregues a um estado infantil de desamparo e terror.

Temos visto de pouco tempo para cá um novo movimento. A revelação da falta de privacidade na rede passa a ser assumida. O Google comunicou aos usuários de seu e-mail que não pode garantir sua privacidade; e o governo norte-americano, que não doura mais a pílula, assume que seguirá espionando em nome da segurança dos EUA e, alegam, dos espionados. Como esta estratégia ainda é recente, não sabemos se ela irá “colar”. Por vezes, o limite do aceitável vai sendo empurrado sem que nos demos conta. A despeito desta estratégia em tentar ‘naturalizar” o monitoramento, aqueles que tornam a estrutura visível e denunciam os dispositivos de monitoramento seguem sendo pesadamente perseguidos e punidos como traidores.

A crença num mito da liberdade só pode ser mantido se fingimos não saber aquilo que sabemos, numa defesa subjetiva que a psicanálise chama de recusa, ou “eu sei, mas mesmo assim”. Talvez tenhamos encontrado um novo “discurso da servidão voluntária” (para usar a expressão de Étienne de La Boétie, no século XVI).

Os vídeos podem ser assistidos em:

http://www.proxxima.com.br/home/mobile/2013/06/06/Projeto-On-The-Go-traz-videos-que-mapeiam-o-comportamento-do-consumidor-mobile-no-Brasil?utm_source=Virtual+Target&utm_medium=email&utm_content&utm_campaign=Newsletter-Proxxima_-semanal&utm_term

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