Pedro de Santi
Nesta semana, acompanhamos consternados duas situações distintas, mas que envolvem um aspecto psicológico em comum.
De um lado, o desaparecimento de um avião que partiu da Malásia; de outro, o julgamento relativo à morte de Amarildo pela polícia do Rio de Janeiro, caso que comoveu o país, tanto em si mesmo pelo quanto é emblemático de inúmeros outros casos semelhantes.
Estes episódios de dimensões tão distintas tem um traço dramático em comum: as famílias envolvidas tem que se haver com uma evidência sem evidência. A morte de Amarildo e a quase certa morte das quase 300 pessoas num avião impõem a necessidade de elaborar a perda envolvida sem que haja um corpo para velar e enterrar ou cremar. Talvez pareça secundário, uma vez que o essencial já parece consumado. Mas não é. A esposa de Amarildo compareceu ao início do julgamento e cobra especificamente isto: que os possíveis assassinos indiquem onde foi deixado seu o corpo. Ele foi dado como desaparecido, mas hoje há evidências e testemunhos de que ele teria sido morto pela polícia.
A situação do avião é, no momento, ainda mais misteriosa. Como é possível em 2014, quando todo o mundo é constantemente monitorado por satélites, que um avião simplesmente desapareça, sem deixar rastros (confirmados, ao menos até hoje, dia 13/03). O vazio de informações é desconcertante e libera em todos as mais variadas fantasias e teorias da conspiração. Num mundo comandado por imagens, a falta delas faz com que a mídia publique constantemente cenas de acidentes anteriores, que possuam algum grau de semelhança com a situação atual.
Caso se passe mais algum tempo sem informações concretas, as famílias obterão os atestados de óbito para providenciarem o que for necessário no aspecto jurídico. Mas restará o fato terrível: elas não terão uma evidencia material, um corpo ao qual velar. No acidente recente num vôo que iria do Brasil à França, muito tempo e dinheiro foi investido para que algum mínimo elemento pessoal fosse resgatado do fundo do mar e enviado a, ao menos, algumas das famílias. Afinal, foi reconhecido o valor simbólico desta materialidade na elaboração do luto relativo àquelas perdas.
Em 1986, ainda na graduação em Psicologia da PUC-SP, participei de uma excursão marcante. Um grupo de estudantes da PUC e da USP se reuniu para fretar um ônibus e ir a Buenos Aires, visitar os psicanalistas que trabalhavam com parentes de desaparecidos. Em meio à reabertura política que seguiu a ditadura militar por lá, as famílias de desaparecidos eram representadas pela Associação da Mães da Praça de Maio. Além da tradicional “ronda”, reivindicando a volta ou, ao menos, a concessão de informações sobre os desaparecidos, a Associação mantinha um grupo de psicanalistas trabalhando com os familiares, maltratados pela agonia e falta de informação: será que eles estavam mortos, ou presos em algum lugar?
Com a passagem do tempo (anos), os familiares gradativamente voltavam a cuidar se suas vidas e afazeres. Mas quando se flagravam nesta situação, eram assolados pela culpa: como assim, ir adiante? E se o familiar desaparecido estiver vivo e precisando de socorro? E o desaparecimento com ou sem morte não teriam consequência para os algozes, não se faria justiça? O processo do luto ficava então engasgado, sem poder ir adiante.
Todo luto envolve culpa. Em dado momento, é comum que nos perguntemos, constrangidos: como eu posso estar feliz de novo sem aquele que perdi? Será que meu amor por ele não era tão grande e insubstituível, afinal? Mas, se houver a mais ínfima possibilidade de que o objeto ausente não esteja perdido, aquela culpa se revestirá de um sentimento de verdadeira traição.
Aquilo que faz com que nosso luto regular vá adiante é especificamente a evidência da perda definitiva. Daí a importância de participar do velório e/ou do enterro, independente das crenças da pessoa. Estes rituais tão duros tornam tangível a morte do ente querido; o enterro ou cremação, consumam o depósito do corpo e o fato de que ele se desfará.
Tudo isto dá à perda dos familiares do Amarildo e dos provavelmente mortos passageiros e tripulantes do vôo da Malásia um grau superior de sofrimento. À dor da perda, soma-se um dificultador do processo de despedida, imprescindível à retomada da vida, lá adiante.
Luto que não passa se chama depressão.