Como assim, “direito de colar”?

Por Gianpaolo Dorigo, Professor do Anglo Vestibulares

“O aluno tem o direito de colar, mas o professor também tem o direito de tomar a prova do aluno caso isso seja percebido”. Como assim, “direito de colar” ? Ouvi a frase acima muitas vezes em diversas salas de professores por aí, e sempre me surpreendi com a naturalidade com que essa ideia é exposta e aceita. A meu ver, trata-se de raciocínio grosseiro e sem fundamento, cuja análise ajuda a lançar uma luz sobre a delicada relação entre ética e educação.
Refuto o argumento do “direito de colar” de duas formas. Em primeiro lugar, no âmbito do direito. Percebe-se que o direto (do aluno) de colar e o direito (do professor) de tomar a prova, enquadram-se no que costuma ser chamado de direitos conflitantes. Se o aluno tiver sucesso em colar, o professor não poderá exercer seu direito de tomar a prova; da mesma forma, no momento em que o professor tomar a prova do aluno, seu direito de colar é automaticamente abolido. Uma situação de direito conflitante é resolvida lançando-se mão de uma autoridade jurídica de instância superior, um Supremo Tribunal, que possa decidir a questão e, dessa forma, criar jurisprudência.
Oras, o “Supremo Tribunal” em uma escola é a sua Direção ou Coordenação Pedagógica, e me parece que desde há muito já foi criada uma jurisprudência sobre o assunto: cada vez que o “direito de colar” entra em confronto com o direito de tomar a prova, a Direção da escola sempre se pronuncia em defesa do professor, ou seja, afirmando a superioridade do direito de tomar a prova sobre o suposto “direito de colar”. Nesse sentido, não se pode imaginar uma situação em que o “direito de colar” seja reconhecido, uma vez que o direto do professor sempre prevalece. A partir daqui, pode-se começar a questionar se o “direito de colar” é efetivamente um direito. A sua própria forma sigilosa, enquanto única forma como o ato pode ser exercido, ajuda o questionamento. A cola, enquanto prática sigilosa, uma vez identificada deve ser interrompida; dificilmente tal prática pode ser caracterizada como um direito.
Mas há uma segunda forma de refutar o assim chamado “direito de colar”. Estamos cansado de saber que o país vive uma situação de verdadeiro déficit ético. Nas práticas do cotidiano e, lamentavelmente, nas práticas de uma certa política formal patrimonialista e – por que não ? – coronelística, predomina a ética do primeiro eu, cujo fundamento se encontra no princípio infelizmente consagrado de levar vantagem. Seu maior atributo é a “esperteza”, definida como a habilidade de contornar a lei buscando um benefício próprio, o que resulta quase na obtenção de bens materiais ou dinheiro, ou simplesmente em uma vantagem que torna possível contornar um obstáculo ou resolver um problema. Ora, a cola apresenta-se como a quintessência da ética do primeiro eu, reunindo em si tanto seu fundamento (levar vantagem) quanto seu atributo (“esperteza”).
Caracterizar a cola como direito significa, de certa forma, consagrar a prática e, sobretudo, atrelar a ela um valor positivo, a ideia de direito, o que me parece errado. Além disso, afirmar o “direito de cola” significa, em última instância, praticar o jogo da esperteza: quem é mais esperto, o aluno que cola ou o professor que vigia ? Conseguirá o aluno obter vantagens pessoais enganando os outros, contornando a norma ? Ou será o professor astuto o suficiente para surpreender os alunos (e lembro aqui do sorriso de satisfação de alguns colegas professores ao surpreender uma cola). Afirmar o “direito de cola” é reforçar o déficit ético em que vivemos.
[Interlúdio perturbador: Mas e nos casos em que a norma estabelecida é incorreta ou arbitrária ? Não seria aqui o desrespeito a norma um ato de resistência, portanto eticamente aceitável – a até admirável ? No caso específico da questão que examino, a cola, cabe a pergunta: a forma usual de avaliação (provas individuais e sem consulta) é adequada ? Não seria a cola um ato de resistência à prática autoritária das avaliações escolares como são realizadas atualmente ? Deixo a questão em aberto, para ser abordada em outra oportunidade. Hoje simplifico a reflexão assumindo que as avaliações são adequadas; assumir esse pressuposto ajuda a delimitar melhor a questão da cola.]
Diante do déficit ético em que vivemos, me parece que o caminho a ser adotado pela escola seja o de um tratamento absolutamente intransigente em relação a questões éticas. Muitos consideram essa intransigência como a simples adoção de uma série de práticas repressivas voltadas contra aqueles que transgrediram normas contidas em um “manual ético” ou “guia disciplinar” ou qualquer outra monstruosidade do gênero. Não é disso que falo. Por intransigência refiro-me ao tratamento ético de todas as questões envolvendo o cotidiano da escola, e não mais chamar a cola de direito me parece um exemplo de medida a ser tomada. Não peço aqui uma simples correção linguistica – que nos levaria para as perigosas fronteiras do “politicamente correto” – mas principalmente um tratamento ético da questão da cola.
Termino lembrando o deprimente sorriso de satisfação de alguns professores quando são mais “espertos” que algum aluno e o surpreendem colando. A cola, uma vez identificada e interrompida, não deve jamais ser celebrada, sua simples ocorrência significa: a escola ainda tem muito trabalho pela frente, a educação contra a barbárie e a educação visando combater o déficit ético não estão funcionando.

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