Coisas da vida: sobre o progresso e os bancos à prova de bumbum

Por Clarissa S. Rahmeier
Professora ESPM

Viver em uma cidade grande como São Paulo, Londres ou Paris nos coloca sempre em contato com novidades. A última que percebi aqui em São Paulo foi a substituição de abrigos de ônibus antigos por modelos high-tech. Muito atento a questões que envolvem o transporte, meu pai, que passava uns dias aqui comigo, comemorou a semelhança entre esses abrigos e os da capital inglesa.
De imediato lembrei que muitos dos bancos dos abrigos de ônibus de Londres são bastante estreitos e, por isso, muito desconfortáveis. Poderiam ser classificados de “bum proof”- termo cunhado pelo americano Mike Davis em seu livro City of Quartz para designar bancos propositadamente projetados para serem desconfortáveis. Porque propositadamente desconfortáveis? Para evitar que sirvam de cama a personae non gratae – leia-se indigentes.
Bancos em forma de um barril deitado, muito estreitos ou com várias divisórias são alguns exemplos de bum proof benches encontrados mundo afora, geralmente em locais públicos, para separar o joio do trigo. Quando criou o termo, nos anos 90, Davis teorizava sobre uma Los Angeles que estava se fortificando para conter o índice de criminalidade – ou melhor, para empurrá-lo para a periferia. Instalação de câmeras de vigilância, ausência de banheiros públicos e construção de shopping centers são apenas alguns elementos apontados por Davis como sendo responsáveis pela fortificação de Los Angeles. Neste processo, segundo o autor, a figura do pedestre acabou por se distanciar cada vez mais da cena principal, em grande parte devido ao “apartheid espacial” sugerido pelas novas formas arquitetônicas daquela cidade.
Apartheid espacial, aqui, não diz respeito a sinalizações óbvias de permissão ou proibição do uso de espaços, públicos ou privados. A expressão remete às formas concretas de parques, praças, shopping centers, prédios, muros, cercas e mesmo abrigos de ônibus que, justamente por sua materialidade, acabam por conectar ou afastar as pessoas, por agregá-las ou separá-las, por convidá-las a compartilhar um mesmo espaço ou, ao contrário, por fazê-las sentirem-se constrangidas ao ocupá-lo.
Você já se sentiu constrangido pela materialidade de um lugar? Explico: você já adentrou algum ambiente que, de tão suntuoso, tão pobre, tão sagrado, tão profano ou tão diferente, o fez sentir pequeno, deslocado, com a sensação de que não deveria estar ali? Primeiro dia de aula tem um pouco disso. Você chega à faculdade sem saber por onde ir, de que modo andar, como chegar até a sala de aula, se a roupa está adequada… e em meio a catracas, elevadores, corredores e escadas você tem que parecer cool. Não é como estar no prédio da escola em que você estudava, o qual você conhecia tão bem. Após a primeira semana você já domina o ambiente e, pronto, está seguro novamente. Até que o chamam para uma entrevista de trabalho: novo corredor, nova sala, nova cadeira – como agir? Bem, meu ponto é o seguinte: mesmo sem termos consciência de que estamos limitados pela forma, pelo aspecto que os lugares têm, direcionamos nossas ações e movimentos de acordo com sua materialidade. E a crescente urbanização que vivenciamos direciona cada vez mais nossa rotina, mesmo que não nos demos conta disso.
Você sabe que uma pessoa atrás de um balcão em uma recepção de um prédio está esperando pela sua identificação e, cada vez mais freqüentemente, por sua imagem. Você já assimilou as regras sociais que as barreiras físicas lhe comunicam. Você não pulará a cerca para entrar no parque Ibirapuera (pelo menos não deve fazer isso!), não chegará a pé pela garagem de um shopping center nem entrará em um restaurante ou igreja pela porta dos fundos. A própria materialidade desses lugares indica como você deve agir e se movimentar. Da mesma forma, desabrigados não usarão os bancos à prova de bumbum para cochilo ou pernoite e pedestres não sentarão ao longo de passeios públicos (calçadas) simplesmente porque não há como.
Não sei se é devido à contenção da criminalidade ou se é falta de interesse mesmo, mas sentar em locais públicos em São Paulo é quase impossível. Não há bancos. Se há, são raros. Tudo bem que as calçadas estão sob a jurisdição dos moradores, mas o fato de não haver bancos ao longo de passeios públicos revela que o pedestre não tem vez. Você pode jogar sua garrafinha d’água nas lixeiras públicas, mas não tem onde sentar-se para bebê-la. Tenho o costume de dar uma caminhada pelo bairro com meu pequeno, mas sempre tenho que levar algum trocado para, caso queira sentar, comprar algo em algum café e, assim, ter o direito a um banco. Banheiro e fraldário públicos, nem pensar.
Passear ao ar livre e parar para um lanchinho caseiro ou simplesmente para ver a vida passar, só se for no parque. Nossa espontaneidade ficou limitada, e nossas caminhadas também. Os códigos sociais inscritos nas formas materiais, ou na ausência dessas formas, acabam por excluir quem se aventura a sair de casa sem carro ou sem dinheiro. Se William Whyte está certo ao afirmar que a qualidade de qualquer ambiente urbano pode ser medida, em primeiro lugar, pelo fato de haver ou não lugares convenientes e confortáveis para os pedestres sentarem, temos um problema. Não é novidade que estamos vivendo em uma sociedade motorizada, e isso tem impacto direto na nossa maneira de sentir e avaliar o mundo em que vivemos. Sim, porque nossa visão de mundo depende do que vivenciamos durante as 24 horas do dia.
Voltando aos bancos de abrigos de ônibus: são 4 novos modelos a serem instalados pela capital. Testei o modelo Caos Estruturado (os demais chamam-se High-Tech, Minimalista e Brutalista). Experimentei sentar e deitar no banco de um deles nas imediações do parque Ibirapuera. Tenho sorte de não necessitá-lo como cama, mas achei-o mais confortável do que os que compõem os abrigos londrinos. Apesar de meu teste ter sido feito em um entardecer ameno de abril, creio se tratar de um abrigo que não abriga: nem da chuva, nem do sol, nem do vento… Mas talvez sirva para acomodar mãe e filho em um eventual lanchinho da tarde. Fazer o quê… quem não tem cão, caça com gato. Com certeza o novo abrigo é símbolo do progresso. Se o banco é bum proof? Faz o teste e me conta.

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