Carlos Frederico Lucio
Quando se fala da contribuição das ciências humanas para pensar o mundo dos negócios, em particular, o universo das empresas, quase sempre se é levado a pensar nas grandes contribuições que a Psicologia proporcionou (e proporciona) para o ambiente corporativo. Como geralmente as pessoas associam ciências humanas a comportamento, essa reflexão recai mais especificamente sobre a área de RH. Outra área relevante é a economia, cuja relação com o mundo empresarial é mais que evidente. No entanto, pensando no rol das ciências sociais como um todo, para a maioria das pessoas, essas contribuições não são assim tão evidentes.
As ciências humanas são propensas a uma confusão entre o que é opinião e o que pode (e deve) ser considerado com uma validade para além da visão do sujeito. Discussões epistemológicas altamente especializadas à parte, um dos pontos mais difíceis neste processo é fazer o leigo na área compreender, em primeiro lugar, o caráter de “ciência” desses campos do saber, incluindo aí, as demais ciências do homem (o que foi bem explicitado pelo meu colega Pedro de Santi em sua fala). Em segundo, quais são, de fato, as especificidades de cada um desses campos e suas principais distinções. Há algum tempo, em minhas aulas, venho procurando construir, junto com os estudantes, algumas especificidades, diferenças e distinções focada nas ciências sociais. Quais seriam as semelhanças e diferenças entre a Sociologia, a Ciência Política e a Antropologia (pelo menos essas três áreas consideras “mães” das demais ciências sociais)?
Para o especialista, é claro que o que se afirma como ciência nada tem a ver com uma defesa do viés positivista (uma área que afirma verdades, leis, determinismos e que tais; que demanda comprovações e explicações lineares e pretensamente cabais – do contrário, não são válidas; completamente isenta de subjetividade). Assim, ao mesmo tempo em que sabemos que aquilo que, por exemplo, é afirmado por um antropólogo sobre construção de gênero, ou pelo sociólogo com relação à violência, não é meramente uma sua opinião; tampouco, refere-se a uma verdade demonstrável por métodos pautados pelo rigor das ciências da natureza. Mas, não por isso deixa de ter sua validade objetiva, ou seja: algo que pode vir tanto de constatações sobre os fundamentos da realidade do objeto investigado quanto do confronto de subjetividades a respeito de uma mesma realidade. Verdade objetiva não significa verdade absoluta. Significa uma afirmação que procura estar colada ao objeto com o máximo de proximidade possível, ao mesmo tempo em que se coloca como o mais isento possível da presença do sujeito. Uma afirmação cuja validade transborda a mera “opinião” focada no sujeito. E o que propicia uma certa garantia e consistência para esta objetividade é o método. As ciências sociais se construíram com métodos que permitem oferecê-la (em maior ou menor grau, em níveis e/ou dimensões relativas – mas nem por isso subjetivas), ao mesmo tempo que permitem um certo grau de comparação entre pesquisas distintas sobre um mesmo objeto e até uma avaliação e/ou confirmação por terceiros dos resultados alcançados por elas.
O segundo ponto mais importante é tentar estabelecer as distinções entre estas três áreas. Sabemos que a realidade produzida pelas sociedades humanas é um imbricamento de distintas dimensões e que, somente por razões de análise, procuramos separar. E isso é o que torna difícil o trabalho de tentar especificar cada uma das três áreas porque é sempre muito complexo estabelecer fronteiras claras onde termina uma e onde começa a outra. Nesse movimento, é preciso pensar quais são as suas possíveis contribuição para estudantes dos vários cursos voltados para negócios (mais especificamente, Administração, Publicidade e Marketing que são, em sim, “ciências sociais aplicadas”).
Em que pese um certo reducionismo de um texto neste escopo, vou tentar refletir rapidamente sobre esses três pontos a respeito das ciências sociais para esta área de formação: suas especificidades, suas distinções e suas contribuições.
Na mais clara herança durkheimiana, podemos afirmar que, genericamente, a Sociologia investiga os processos de interação social (tudo aquilo que diz respeito à construção e/ou desconstrução dos laços sociais). Chamo de fatores agregadores aqueles que são constituidores desses laços (como a família, a religião, a economia, a política, os grupos sociais etc.); fatores desagregadores seriam aqueles destruidores desses mesmos laços (como a guerra, a violência, a exclusão social, desordem, caos etc.). Nesse sentido, esta área de conhecimento tem contribuído muito para pensar tanto o universo empresarial em si mesmo (pensando as empresas como organizações como um cenário que produz conflitos, estratificações, relações hierárquicas, etc.) como o próprio lugar das empresas nas suas relações institucionais, seja na esfera do Estado, seja com as demais organizações, seja com a sociedade.
A Ciência Política, por sua vez, é a ciência social que se dedica a investigar as formas de poder construídas pelas sociedades e o seu exercício, nas suas mais variadas configurações de organização social. Inspirado no conceito de formas de dominação proposto por Max Weber, instruo os estudantes a pensar os poderes legítimos (aqueles que são livremente aceitos pela sociedade, por uma compreensão de sua necessidade para garantia da ordem – como por exemplo, as leis, as instituições, as autoridades religiosas, família etc.) e os poderes não legítimos (aquelas formas de poder que, não aceitas pela sociedade, são impostas a força – como nos regimes totalitários, por exemplo). Do mesmo modo, contribui para pensar o jogo de poder que ocorre no interior das organizações como o papel que empresas e empresários tem tido no cenário político dos países e no contexto internacional em tempos de globalização. Governos são instituídos e destituídos conforme o jogo de interesses empresariais nos mais variados campos.
Finalmente, a mais desconhecida (pelo menos pelo leigo) das ciências sociais, a Antropologia investiga aspectos que estão relacionados à construção da diversidade tanto biológica quanto cultural dos grupos humanos. Com relação à diversidade biológica, investiga os tipos biológicos humanos e, inclusive, se é possível falar de “raças” humanas e as consequências disso; sobre a diversidade Cultural/Social, investiga a enorme variedade e diversidade das configurações socioculturais dos agrupamentos humanos e suas distintas manifestações simbólicas que, resumindo, seria o complexo fenômeno da cultura. Toda organização empresarial é uma micro-sociedade que produz cultura. Ao mesmo tempo, elas fazem parte de um contexto bem maior que é a chamada sociedade de mercado ou sociedade capitalista. Assim, não podemos nos furtar de pensar que, se a nossa sociedade ocidental é chamada de “sociedade capitalista”, de alguma forma o capitalismo, que originalmente é concebido como um sistema econômico, tornou-se a própria identidade construída sobre nós mesmos. Ou seja, diferentemente da tradicional abordagem econômica, toma-se o capitalismo como um sistema simbólico e cultural que imprime nas pessoas modos de pensar, valores e crenças, configurando a teia de significações (à la Clifford Geeertz) que são tecidas nas sociedades chamadas “modernas” e que servem como referência para o agir (presente e futuro) de seus integrantes. Nas palavras de meu antigo orientador (prof. Guillermo Ruben, do departamento de antropologia da Unicamp), a partir do advento da modernidade, o capitalismo torna-se, pelo menos para a chamada sociedade ocidental, o eixo epistêmico que orienta valores e comportamentos, além de formas de organização, cujo modelo central são as empresas (igrejas, clubes de futebol, ONGs, partidos políticos etc., estão organizados segundo a lógica construída pelas organizações empresariais). Ao mesmo tempo, cria estratificações sociais, grupos identitários, relações de poder e dominação o que torna sua realidade altamente complexa. Esta dimensão cultural do capitalismo foi colocada em bastante evidência pelo fenômeno da globalização.
A partir do final do século XX, não é possível tornar-se um profissional especializado no mundo corporativo (não importa que carreira se escolha), sem ter em mente todo esse emaranhado que acaba envolvendo de forma direta ou indireta (às vezes mais direta do que gostaríamos) as empresas, empresários e pessoas ligadas à esfera empresarial. Um exemplo é o caso, vivido pelo Brasil atual, das investigações da operação Lava-Jato: empresas e empresários (de publicitários, profissionais de marketing, a gestores, diretores, industriais etc.) envolvidas em escândalos de corrupção, dilapidando patrimônio público, com executivos presos, perdendo substantivamente valores de suas ações no mercado financeiro; ou mesmo o caso gritante da Samarco/Vale do Rio Doce (que neste dia 05/11 completou 1 ano) em que o maior crime socioambiental já cometido no Brasil (e considerado um dos maiores do mundo) por irresponsabilidade e negligência criminosa expôs uma intrincada rede de promiscuidade entre o poder das grandes corporações e o Estado no Brasil. O mundo corporativo coleciona escândalos como estes que se multiplicam pelo mundo e que envolvem um intrincamento complexo de variáveis que extrapolam em muito o universo estrito do mundo dos negócios.
Finalizo evocando um paralelo com as palavras de Claude Lévi-Strauss a respeito dos mitos, quando ele responde à pergunta “pra que servem os mitos?”: os mitos são bons para pensar. Não pensar “sobre algo”, mas “pensar!”. As ciências sociais (e as ciências humanas, por extensão), são boas para nos fazer pensar (aqui, não somente o pensamento em si, mas o pensamento sobre este complexo da realidade social que envolve formação de grupos, jogos de poder, visões culturais etc.). E, se saber pensar com sofisticação, qualidade, profundida e densidade é um dos requisitos fundamentais para nos definir como seres humanos, é ainda mais necessário para se ter uma visão estratégica num mundo cada vez mais complexo, dinâmico e desafiador.