Cidadão Kane aquém?

Carlos Frederico Lucio

No dia 22/05, o IBOPE divulgou uma pesquisa para a corrida presidencial 2014. No pacote de investigações sobre as intenções de voto, o Instituto pergunta também ao entrevistado sobre sua avaliação da atual gestão da presidente Dilma Rousseff. Isto é, o foco do Instituto era a pesquisa sobre a corrida presidencial e a avaliação do atual governo fez parte, como complemento, do pacote da pesquisa.

À noite, assistindo a dois telejornais, pude testemunhar o que é o acinte da manipulação desavergonhada da notícia para cumprir certos propósitos (os quais, inclusive, nem são tão claros e muito sujeitos a especulações), cuja consequência é a total deturpação da informação. E ainda há alguns arautos da grande imprensa que insistem em defender sua “isenção”, sua “imparcialidade”. Que esta isenção seja desejável, não há dúvida. Mas que ela efetivamente acontece, é muito ingênuo acreditar (e desonesto propagar, por se saber ilusório), como o caso analisado aqui ilustra bem.

No primeiro, a notícia é dada da maneira correta: o âncora faz a chamada para a pesquisa sobre a corrida presidencial; ressalta que Dilma levaria a eleição ainda no primeiro turno porque seu percentual de intenção de votos (40%) seria superior à somatória de todos os outros candidatos juntos (inclusive computando os votos indecisos) assim como no segundo turno, tanto na simulação contra Aécio Neves (PSDB) quanto contra o candidato Eduardo Campos (PSB). Na sequência, o telejornal indica que a pesquisa “também” inquiriu os entrevistados sobre uma avaliação do governo. Ou seja: deixou claro que este último não foi o foco, mas era uma pesquisa sobre intenções de voto e o tema entrou de forma complementar.

Terminado o primeiro telejornal,  tenho o hábito de conferir como as notícias são veiculadas num outro que é tido como um dos que possuem o maior índice de audiência. Sobre ele, é sabido o seu poder de penetração como veículo de informação. O que vi, me deixou estupefato.

Como cidadão e eleitor, sou um dos muitos que somam a massa de decepcionados com o que se tornou o Partido dos Trabalhadores e, embora reconheça muitas virtudes no atual governo, estou longe de ser um dilmista de carteirinha ou mesmo defensor da presidente Dilma (além de ser um crítico do populismo barato do ex-presidente Lula que, reconheço, tem lá suas sacadas, mas se perdeu no jogo do poder). A despeito disso (e de ser um dos que incorporam a massa de “indecisos”), fiquei chocado com o que o segundo telejornal a que assisti fez: um ato de revoltante pseudo informação. Num rompante de resgate da era pré-Collor, os âncoras iniciaram a chamada da matéria evocando uma pesquisa do IBOPE sobre a avaliação do Governo Dilma. Dão os números (razoavelmente negativos, porque revelaram uma avaliação mais baixa da qualidade da gestão), conferindo um razoável destaque para aqueles que desaprovam o governo. Nada, absolutamente nada é falado sobre a corrida presidencial e sobre o fato de que, apesar de não tão bem avaliada, Dilma levaria a eleição na eventualidade dela ser por estes dias. Nem uma palavra sobre a intenção de voto foi dita na matéria. Para quem assistia, parecia que a pesquisa do Ibope se resumia à opinião sobre o governo.

Como se viu, estava longe de ser verdade. Mas foi a “verdade” veiculada.

Levando em conta o poder do veículo em questão e que os âncoras de um telejornal são responsáveis por sua edição, não encontro outra palavra, embora reconheça o seu peso, a não ser calhordice para classificar este tremendo gesto de desrespeito para com o eleitor (e sua inteligência), o cidadão que procurou aquela fonte para se informar. Poder barato da Imprensa à la “Beyond Citizen Kane” – conhecido documentário produzido e dirigido em 1993 por Simon Hartog para uma emissora de TV do Reino Unido que narra todo o processo de manipulação das informações da mídia e suas relações com o poder (usando a emissora em questão como fio condutor) e que expôs o caso de ascensão e queda do ex-presidente Fernando Collor de Mello, com uma análise que se tornou referência sobre a edição do último debate político que fora ao ar no mesmo jornal da emissora. Este documentário nunca foi exibido no Brasil, ensejando, durante muito tempo, a consolidação do mito de que ele teria sido “proibido” e “alvo de ação judicial da emissora”, ameaças etc. (o que, segundo vários analistas, nunca aconteceu). Confira abaixo o link para acessá-lo.

Mais uma vez somos testemunhas de aviltantes e desavergonhadas manipulações de informação, herança dos vários períodos ditatoriais (e não só o Golpe de 64) da história brasileira no século XX. Em pleno período democrático, experimentamos esta sensação de descrença deste importante e decisivo mecanismo de manutenção das forças democráticas que é a imprensa. Afinal, informação alicerça o poder de decisão, de escolha, de ação.

Tudo isso confirma as ideias de Noam Chomsky e Edward S. Herman no célebre livro “Manufacturing Consent” (transformado num excelente documentário dirigido pelos canadenses Mark Achbar e Peter Witonick, os mesmos que realizaram “The Corporation”, anos mais tarde). Uma das questões mais relevantes do ponto de vista da organização social é a manutenção do controle da ordem: como garantir que a sociedade funcione, sem grandes conflitos de interesses que levaria, num extremo, a um estado de anomia. Para isso, é muito importante que as pessoas que compõem este determinado grupo estejam minimamente controladas. Há formas legítimas (sistemas democráticos, em que as pessoas, em tese, aceitam formas de controle – como as leis, autoridade familiar, igreja etc. – por entenderem que elas são importantes para o bom funcionamento do grupo) e há formas ilegítimas (aquelas em que o controle é exercido pela força, como nas ditaduras e regimes totalitários – civis ou militares; laicos ou teocráticos). Para pensar sobre isso, Chomsky e Herman, dois dos mais ácidos críticos das relações entre mídia e poder, tomam uma ideia importante de um intelectual americano dos anos 1920, Walter Lippmann. Em um sistema democrático, uma vez que o uso da espada e da força bruta para manter as pessoas sob controle o descaracterizaria como tal, a sociedade encontrou uma maneira muito mais eficaz para cumprir este propósito: controlar o que as pessoas pensam. Controlando o que elas pensam, controla-se o seu comportamento e o seu direcionamento. Inclusive, suas escolhas.

E parte da grande imprensa vem cumprindo com louvor este papel. Principalmente se o seu campo de ação for uma sociedade com baixo potencial de leitura crítica das informações que recebe, como é notadamente o caso da sociedade brasileira.

Com relação ao caso em questão, que ensejou este texto, seria muito mais honesto e interessante que os agentes da mídia pudessem assumir, às abertas, o seu lugar no debate político. Seria desejável, no mínimo, que fossem mais éticos e, ao invés de consolidar o mito da isenção, assumindo uma posição parcial às ocultas, velada (o que os expõe ao ridículo diante daqueles que têm um pouco mais de senso crítico frente ao que veem e leem por meio de seus canais) e assumissem de vez o seu lugar no jogo do poder. Até porque, em tempos de democratização da informação e do debate por meio das mídias cibernéticas, esta máscara leva muito menos tempo para cair, expondo os seus protagonistas a um certo vexame.

Que as organizações da grande mídia sejam contra a reeleição de Dilma Rousseff, é aceitável. Não vejo problema na parcialidade, desde que às claras. Mas não ajam como bandidos na calada da noite, de forma sorrateira, manipulando informações para direcionar o eleitorado incauto e ignaro para o que desejam. E o que é pior: vendendo a imagem de imparcialidade. Isso é muito feio. E já passou o tempo desse tipo de recurso bem primário.

Afinal, todos sabemos, como afirma um dos entrevistados no documentário de Hartog supracitado a respeito da empresa em questão – mas que vale para qualquer empresa da grande imprensa: elas não se interessam necessariamente por este ou aquele candidato; não se interessam por este ou aquele partido. Interessam-se pelo poder! Até podem, como é o caso aqui debatido, tentar trabalhar para eleger o candidato que julgam mais afinados com seus propósitos.

Mas isso, como bem demonstrou o caso Collor, é muito arriscado.

Depois de tudo, ainda vêm com o discurso de que não entendem porque, no ano passado, muitos manifestantes atacaram veículos de representantes da grande mídia e foram até a sede desta grande empresa de comunicação em São Paulo para gritar contra esta prática hedionda.

Poupe-nos a nós, brasileiros, de sermos chamados de tolos.

Links Importantes:

a)     Caso queira ver os resultados da pesquisa Ibope, clique aqui a matéria publicada no Portal UOL.

b)     Clique aqui, caso queira ver, na íntegra, o documentário mencionado “Brazil, muito além do Cidadão Kane”.

c)     A despeito dos debates ocorridos em 1989 (em particular, a última edição mencionada nesse artigo , 13/12/1989), a Rede Globo mantém sua memória num link em seu site. Acesse aqui para ver a Edição do Jornal Nacional. Neste link, você confere também as versões, na íntegra, de todos os debates veiculados pela emissora naquele ano.

Atenção: os nomes das empresas de comunicação foram omitidas por se tratar de um texto para blog institucional. Este fato, entretanto, não compromete o objetivo e o teor desta reflexão.

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