Censurar a censura

Cesar Veronese, Professor do CPV Vestibulares

A Justiça de São Paulo acaba de proibir a exibição da peça “Edifício London”, de Lucas Arantes. Determinou também o recolhimento da edição de 500 exemplares do texto e condenou o autor a pagar uma multa de 20 mil reais por danos morais.

A peça se baseia no assassinato da menina Isabella Nardoni, de cinco anos, arremessada pelos pais da janela do prédio em que morava, em 2008. no bairro de Santana. A juíza que proibiu a encenação e condenou seu autor alegou que “obras de ficção que usam fatos facilmente identificáveis após exposição na mídia violam o direito de privacidade, pois o público ‘mediano’ não consegue separar ‘licença poética’ de acontecimentos reais”.

Ocorre que a peça não é a mera transposição dos fatos reais e sim um questionamento sobre a reconstituição do crime, realizada em 27 de abril de 2008 e transmitida ao vivo pela televisão. A proposta era questionar a anunciada veracidade da realidade encenada, tal como apresentada por alguns programas de televisão, sobretudo os de José Luiz Datena e de Marcelo Rezende.

O mínimo que se pode dizer diante da condenação é que quem não consegue estabelecer o discernimento entre “licença poética” e os “acontecimentos reais” é a própria juíza que emitiu a sentença, pois o que violaria mais “o direito de privacidade” do que a espetacularização midiática da reconstituição do crime? Ou será que a mídia, especialmente os programas de Datena e Rezende, são 100% isentos e se contentam apenas em informar sem pensar no retorno dos seus anunciantes?

O julgamento da juíza apostou na incapacidade do público “mediano” em separar realidade e ficção. Cabe o questionamento: e a elite autonomeada esclarecida, consegue de fato discernir essas fronteiras? Intelectuais não estenderam seu braço para saudar Hitler? Sartre não afirmou que “a União Soviética é o único país do mundo onde há liberdade”? Caetano Veloso não declarou que Sandy canta tão bem como Elis Regina? A comissão do Nobel de Literatura não desistiu de outorgar o prêmio a Borges depois que este aceitou um convite para almoçar com Pinochet?

Como se vê, nem sempre é o público “mediano” que é incapaz de discernir as coisas com clareza. Muito menos em nossa sociedade do espetáculo do lado debaixo do Equador, onde, desde os tempos da catequese jesuítica, fomos ensinados a acatar a autoridade dos doutores da Igreja e dos professores de Direito da Universidade de Coimbra. Assim nasceram as instituições que hoje nos julgam, seja no direito de encenar uma peça, de publicar um livro ou de questionar o circo da nossa mídia televisiva.

A escritora francesa Marguerite Duras, cujo centenário de nascimento é comemorado este ano, costumava dizer que a arte era impossível nos países comunistas porque “a imaginação e os animais silvestres não se desenvolvem em cativeiro”. Infelizmente, o cativeiro nem sempre tem cercas vermelhas.

Para ler outros textos do Professor Veronese, acesse blog CPV (link Dicas Culturais do Verô).

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