João Carlos Gonçalves
Serviço. Cinecom: Tomboy. A (des)construção do feminino. Os professores Pedro de Santi e João Carlos Gonçalves (Joca) realizarão uma reflexão semiótica e psicanalítica sobre o filme, no dia 17/10, às 14:00 hs., no auditório Victor Civita.
As pistas começam nos créditos: silêncio e informações referenciais com palavras grafadas ora em azul, ora em vermelho. Sons de vento.
Prólogo: o personagem filmado por trás em primeiro plano (ainda não tem face-identidade?). Cabelos curtos ao vento, camiseta azul. Árvores balançando ao som de mais vento. A mão do personagem sinestesicamente representada. Rosto com olhos fechados que se abrem e miram o céu; a figura do pai ao volante segurando suas pernas, pergunta:
“Tudo bem aí encima?”.
Corte seco. Silêncio. Título do filme TOMBOY em azul, depois vermelho e, finalmente alternando uma letra em azul e outra em vermelho.
As mãos do pai e da filha se misturam ao volante: o pai dando a direção.
A filha: – Esquerda?
O pai: – Não, direita.
A filha: – Em frente?
O pai: – Não, direita. Dar seta.
A Semiótica de extração americana, ou peirceana, trata a experiência como as observações de cada indivíduo ao deparar-se com os fenômenos, ou seja, toda e qualquer ocorrência que se tornam presentes em nossa mente, cabendo-nos percebê-los, constatar sua existência e, finalmente, interpretá-los. No nosso caso, estamos diante de um filme, seus créditos e Prólogo. Este é o nosso fenômeno a ser “decifrado”.
A fenomenologia peirceana requer três faculdades: “ver, atentar para, e generalizar.” A simplicidade de tais quesitos prenuncia um dos traços axiais da filosofia de Peirce, seu pensamento no imediatamente experenciável: o cotidiano.
A faculdade de “atentar para”, também chamada de “Indução”, segundo a fenomenologia peirceana, não significa a recuperação total de uma experiência. A “Indução” abre uma fratura pela qual se introduz, através de associações e inferências, a própria historicidade do sujeito e seu juízo perceptivo; o próprio conceito de inferência associativa aponta para a capacidade de fazer brotar e extrair uma idéia de outras e encontra na linguagem o seu acesso natural, pois através dela – nela – está o registro, a representação da idéia.
Nos créditos os índices do masculino e do feminino já se apresentam nas cores do letreiro. O personagem é apresentado aos poucos em decupagens metonímicas (o masculino e feminino também se insinuam). A figura do pai dando a direção e, o mais interessante, “a menina” no alto, mirando o céu (signo simbólico: espaço sideral?), sentindo o vento na face.
A cena me remeteu a um filme que adoro: “Asas do Desejo” de Wim Wenders. No filme os anjos são adultos, em Tomboy, tanto Miguel quanto Laura, possuem no próprio nome os índices angelicais. No filme de Wenders um poema de Peter Handke é sempre mencionado:
“Quando a criança era criança,
andava balançando os braços,
queria que o riacho fosse um rio,
que o rio fosse uma torrente
e que essa poça fosse o mar.
Quando a criança era criança,
não sabia que era criança,
tudo lhe parecia ter alma,
e todas as almas eram uma.”
Interessante notar, que na cena final da “escolha”, a personagem tira o vestido azul (Note-se o revezamento das cores vermelho e azul nos figurinos e na cor dos quartos das crianças) e o coloca em um galho de árvore, a câmera sobe e o barulho do vento toma conta da cena, remetendo ao caráter simbólico do prólogo. Na sensível direção de Céline Sciamma o como se diz (enunciação) é tão importante quanto o próprio dito (enunciado), não esquecendo que tais conceitos da teoria estruturalista trabalhados por Barthes, Todorov e Jakobson, e (re)trabalhados pela psicanálise lacaniana, onde o enunciado seria o registro da referencialidade temática, possível de redução e enunciação enquanto tecido discursivo que encampa o enunciado, o modo como se estrutura a referência temática – estrutura que faz estilo, único e singular. Percebemos, portanto que o filme opta por uma enunciação metafórica e alegórica, o que garante a obra uma estrutura poética comovente: um conto sobre a inocência e a descoberta do desejo.
Novamente, “Asas do Desejo” se fez presente em minha leitura, na cena em que a trapezista diz-pensa: “Não sei se há destino, mas de uma coisa estou certa: há uma decisão a ser tomada”. Em Tomboy, creio que a “decisão” de assumir o seu desejo, está marcada pela eliminação do signo (roupa-vestido) feminino (lembrando da cena do “corte” do maiô vermelho). Na cena final Laure assume seu nome de “menina” com roupas de “menino”. Pra se pensar…
… Mas lembrando que Desejo vem de Desiderare um lindo jogo simbólico armado a partir das inferências da palavra latina Desiderium, analogia sideral, diretamente ligada a Eros. Nosso desejo estaria sempre ligado a falta, a ausência… a um outro lugar (ao alto): o sidera, de estrela, está dentro da própria palavra Desejo, aqui entendido como uma possível via de acesso (im)possível ao conhecimento humano. Quando se decide, se é livre.
Não podemos esquecer que, ao se falar em Semiótica, fala-se neste signo, conceito elementar de toda e qualquer linguagem: aquela alguma coisa que representa algo para alguém. Ou seja: todo e qualquer signo, na sua relação com aquilo que ele representa apresenta, por sua vez, a natureza de um duplo: a linguagem substitui/registra/está no lugar de alguma coisa que não é ela própria. O conceito adotado pelo fundador da Semiótica, Charles Sanders Peirce (1839-1914) nos diz que “Um signo, ou representamen, é aquilo que, sob certo aspecto ou modo, representa algo para alguém. Dirige-se a alguém, isto é, cria, na mente dessa pessoa, um signo equivalente, ou talvez um signo mais desenvolvido.”
Assim, o signo (o Nome e a Palavra) é algo arbitrário e convencional que passa pelo pacto social e coletivo (Mikael: masculino – Laure: feminino; Azul: menino – Vermelho: menina).
Penso não ser muito forçado estabelecer uma relação analógica do filme com a atual retomada da Cultura Queer (recentemente tivemos em São Paulo o I Seminário Queer – Cultura e Subversões da Identidade, com nomes importantes do pensamento contemporâneo como Judith Butler e Wladimir Safatle). Uma das ideias centrais da teoria queer é que qualquer identidade é múltipla, arbitrária, instável e excludente. Sexo e gênero, por exemplo, seriam construções sociais, criando as normas e padrões que materializariam o sexo dos sujeitos. Fica mais evidente ainda a analogia com o filme se atentarmos para uma fala de Judith Butler em entrevista ao jornal O Globo: “Ao nascermos nos é atribuído um gênero. E, em seguida, há uma questão de como habitar ou viver esse gênero. Algumas crianças gostam ou até amam o gênero atribuído a elas; outras se resistem e até o recusam. Gênero é um processo e começa com uma situação involuntária. No decorrer da existência, temos que desenvolver uma forma própria de viver o gênero, às vezes recusando o que nos foi atribuído. Essa é uma zona de liberdade que precisa ser afirmada.”
Numa das cenas mais tocantes do filme, a mãe conversa com a filha e diz que não tem nada contra ela “brincar” de ser menino. Mas estaríamos diante de uma simples brincadeira de criança? (A alusão à brincadeira é muitas vezes sugerida no filme, mas, creio, com uma visão crítica e alegórica: Laure construindo um “pênis” de massinha; criando um bigode com o cabelo da irmã, jogando cartas com o pai, etc).
Laure é fascinada pela Floresta, lugar emblemático que constrói a geografia do filme (signo do mistério e do encantado), não é à toa que lê para a irmã “O Livro da Floresta”, que fala do personagem Mogli, muitas vezes associado às leis de sobrevivência no seio do escotismo (Laure passando pelos ritos de força e poder para ser aceita no grupo e tendo que enfrentar os “lobos” da floresta – ou os dragões, já que escolheu como nome o anjo Miguel).
Para concluir, a meu ver, a canção “Pecado Original” de Caetano Veloso, resume as inquietações abordadas no filme Tomboy:
“Todo dia, toda noite
Toda hora, toda madrugada
Momento e manhã
Todo mundo, todos os segundos do minuto
Vivem a eternidade da maçã
Tempo da serpente nossa irmã
Sonho de ter uma vida sã
Quando a gente volta
O rosto para o céu
E diz olhos nos olhos da imensidão:
Eu não sou cachorro não!
A gente não sabe o lugar certo
De colocar o desejo
(…)”
Laure, assim como todo ser humano, “não sabe o lugar do seu desejo”. Ao representar nossa experiência e relacioná-la à experiência do outro, constituímos nossas respostas sígnicas ao mundo, materializamos nosso existir histórico e social.
O que gera o movimento narrativo do filme é o desejo e podemos dar a essa “menina-menino” uma dimensão simbólica: a passagem da infância da alma e a dolorida perda da sua inocência. A passagem para a vida juvenil e a fugaz descoberta de suas harmonias/desarmonias ocultas. A personagem aponta, semioticamente, para a renovação da vida (os mistérios da floresta) e o (des)caminho que leva a descoberta de si mesmo e o aprendizado de que “cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é”.