Bonitas o bastante. Consumo e formas de subjetivação.

Pedro de Santi

Nos últimos anos, sobretudo desde o acirramento da crise econômica depois de 2014, tenho sido procurado profissionalmente por grandes agências de publicidade. O mesmo ocorre com muitos colegas da área de Ciências Humanas.
Sendo psicólogo, sou chamado como “especialista” em comportamento e mente humana para contribuir na compreensão de alguma demanda específica de um cliente. Por vezes, trata-se da etapa de concorrência mas, em geral, já se está na etapa de planejamento.
Aqueles que me procuram trazem pesquisas que descrevem comportamentos de um grupo alvo específico, à procura de compreende-lo melhor e conceber ações de marketing. Embora as agências consigam ter muita riqueza na captura de comportamentos e tendências, muitas vezes falta alguém que possa analisar aquele material e contextualiza-lo cultural e socialmente.
É bastante claro que o grupo mais focado nesta amostra é a classe C. Mais especificamente, as mulheres jovens que a ela pertencem.
Sabemos qua ao longo de cerca de 20 anos- desde o estabelecimento do Real como moeda e passando pelas ações de inclusão social focada no consumo pelos últimos governos- houve uma verdadeira explosão no campo do consumo no Brasil. E foi especificamente a classe C a estrela deste fenômeno. A consistência deste novo acesso foi testado exatamente neste período de crise, a restrição de crédito, aumento de juros e endividamento acumulados, somados às incertezas relativas ao futuro, produziram uma inevitável retração do consumo.
Será que aquela inclusão foi falsa ou inconsistente e teria se dissipado?
Até aqui, o óbvio. Como óbvio é o interesse por parte do mercado em não perder aquele contingente de consumidores. E então apareceu recorrentemente nas pesquisas das agências um dado interessante. Sem dúvida, os consumidores de classe C diminuíram seu consumo e passaram a substituir produtos mais caros por outros mais baratos, mas permaneceu uma faixa de consumo de determinados produtos mais caros, que haviam passado a ser consumidos no período de aumento de poder aquisitivo.
Tudo leva a crer que se trata de uma questão relativa à identidade.
A inclusão social produzida pelo acesso ao consumo produziu um efeito de auto-estima muito importante. Num ambiente cultural dominado pelo consumo, poder ou não consumir ganha a dimensão de “existir” socialmente ou não. As diversas formas de ostentação do novo patamar de acesso ao consumo deram testemunho disto. Era com alívio e, por vezes, euforia, que se ostentava o novo patamar de existência.
Com a retração do consumo na crise, parece ter se tornado uma questão de vida ou morte a afirmação de que aquela conquista não seria perdida, não haveria retorno à condição anterior. Assim, em muitos extratos sociais houve um enxugamento importante do consumo, mas alguns ítens (como eletrodomésticos, viagens, bebidas) foram mantidos como índices de pertinência, marcos de um território que não pode ser perdido.
Para muitos autores da área de Ciências Humanas, direcionar a constituição da identidade ao acesso ao consumo seria um caminho alienante de submissão ao neoliberalismo. Em outros termos, este acesso ao consumo seria enganador e apenas a forma de o século 21 atualizar a cultura de massa do século 20.
Esta leitura é forte, mas talvez só contemple as “intenções” da cultura de massa, sem levar em conta as reações e caminhos buscados pela emancipação subjetiva.
Neste sentido, achei muito expressiva a demanda recente de uma agência que propunha discutir o valor da beleza para jovens da classe C. As pesquisas identificaram um anseio delas em se tornarem bonitas em busca de adequação. Não se tratava de ambicionar ser linda, mas de ser bonita o bastante. E isto vinha acompanhado de um discurso de empoderamento feminino. Intrigava a equipe da agência, por parecer contraditório, unir as ideias de adequação e empoderamento.
Em nossa discussão, fomos formulando a hipótese de que, em outros tempos e comtextos, a busca pela beleza por parte das mulheres teve o sentido de buscar inclusão e poder, mas na condição de objeto do desejo masculino. A estratégia podia até ter alguma eficácia, mas o modelo condenava a mulher a estar reduzida àquela posição. Enquanto objeto, ela podia ser consumida e descartada, como qualquer objeto de consumo.
Muitas jovens da classe C passaram a ter acesso a uma educação e qualificação melhores. Com isto, pôde nascer também uma consciência maior de sua condição e o anseio pelo empoderamento que as tornasse protagonistas de suas vidas.
Talvez, quando uma jovem de classe C busca estar bonita o bastante, ela esteja procurando habitar um espaço de fronteira. Ela está bonita o bastante para se sentir bem consigo e ter acesso aos ambientes que pretende frequentar (universidade, trabalho, lazer), mas não quer investir na beleza a ponto de que ela se imponha em primeiro plano a tal ponto de obscurecer seus demais atributos e qualificações pessoais. Ela pode estar evitando ocupar a posição de objeto e afirmar sua condição de sujeito do sexo feminino.
Se isto estiver acontecendo, apesar de todos os problemas que conhecemos em nossa cultura contemporânea, formas de subjetivação interessantes e não alienadas estariam se afirmando

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