Pedro de Santi
O filme que está em cartaz é bastante diferenciado. Muito tem se escrito sobre ele e há sempre o risco de antecipar a história e estragá-la.
Há uma experiência paradoxal: não é possível “entrar” no filme como em geral fazemos em nossa identificação com os protagonistas, uma vez que o jogo da representação é revelado a cada instante. Passeamos pela coxia do teatro como passeamos pela coxia da linguagem, tornando visível a estrutura invisível que sustenta a representação. Isto pode gerar um desconforto em muitos espectadores, como se estivéssemos com óculos com o grau errado ou se alguém não nos deixasse esquecer que estamos vendo um filme. Para mim, o efeito foi o do humor, pelo inusitado.
De outro lado, ficamos presos à tela pela estratégia de fazer o filme como em um plano contínuo, não se percebe cortes entre as cenas, embora se passem uns 4 dias. O espectador é trazido para dentro da experiência e, de alguma forma, demandado a estar conectado a cada instante. Desta perspectiva o filme é exaustivo e ao mesmo tempo, relaxante: é como se ele fosse um refresco que sacudisse a saturação de que sofremos por assistirmos tantos filmes semelhantes. Em “Festim diabólico” (1948), Hitchcock usou este recurso, mas o filme se passa inteiramente dentro de uma mesma sala. Aqui, a câmera se move como um participante da cena entre os mais diversos cenários do teatro e dos arredores da Times Square. O diretor e co-roteirista Alejandro González Iñárritu é genial.
Outro recurso poderoso de inclusão do expectador na cena é o amplo uso de “closes”, que de fato nos inclui na roda das conversas, como um observador onipresente e próximo. Vemos de perto (um pouco demais) as marcas de envelhecimento de Michael Keaton, Edward Norton e de Naomi Watts. A passagem do tempo é, afinal, um dos temas centrais do filme.
Em suma, estamos próximos e distantes ao mesmo tempo; talvez como o próprio Birdman em seu mundo.
Há momentos fortes do roteiro, como aquele em que Birdman se dirige à câmera e diz o que pensa do público. Ou a crítica de teatro enquadrando as celebridades do cinema que pensam que podem ser atores de teatro, ou ainda uma crítica feroz à própria crítica.
Há inúmeras referências a outros filmes no texto e nas cenas. A mais imediata ironia do filme é a referência aos dois filmes em Keaton interpretou Batman, nos anos 90. Mas há outras, como o fato de que a atriz que interpreta sua filha (Emma Stone) é a atual namorada do Homem Aranha, na franquia Marvel.
O filme causa estranheza, mas não chega a ser desestabilizador. Pense-se em “Saló” (1975), de Pasolini, “Repulsion” 1965), de Polanski ou “Cidade dos sonhos”(2001), de David Linch. Ele ainda habita um lugar palatável e hollywoodiano. Não é à toa que tem concorrido e ganho tantos prêmios. Ele concorre ao prêmio de melhor filme no Oscar com o excelente “Boyhood”, outro filme que ultrapassa o campo da representação, por ter sido filmado ao longo de 12 anos e ter acompanhado o crescimento e amadurecimento real dos personagens e atores.
O subtítulo do filme, “a inesperada virtude da ignorância” contrasta com a overdose de auto-consciência envolvida.
Ah, sim. Aprendemos com o filme que a crítica e o acessor de marketing gostam mesmo é de sangue. Sem metáforas.