Por Pedro de Santi
Num típico prédio de quatro andares em Viena, ladeado por outros semelhantes e há duas quadras do anel viário que circunda seu centro histórico, encontramos um de seus pontos turísticos. Ele não é nem vagamente monumental, como é comum por aquela cidade. No caminho que parte do anel viário, uma placa anuncia: Sigmund Freud Platz. Com perfeita ironia, numa praça logo atrás encontra-se uma bela igreja em ruínas. Neste ano, ao lado da placa na praça também se pode ver o anúncio de uma exposição abrangente da obra de um dos seus netos, Lucien Freud. Esta sim, situada num dos pontos monumentais da cidade: o maravilhoso Museu de História da Arte. Uma ótima exposição sobre suas últimas obras esteve no MASP há poucas semanas.
Tudo é muito simples na casa de Freud. Desde o térreo, sobe-se por uma pequena escada que conduz a um conjunto duplo no primeiro andar. De um lado, ficava a sala de espera do consultório e duas salas conjugadas: numa ficava o consultório- fonte e destino de toda reflexão ética e teórica gerada desde então pela psicanálise-; na outra, o escritório onde Freud escreveu boa parte dos vinte e tantos volumes que compõem suas obras. No mesmo andar, ficava a casa da família. Deve ter sido espremido para o casal, a cunhada e os filhos. Quase não se encontram objetos pessoais. Papéis de parede indicam como era a decoração da época em Freud vivia e atendia ali.
Não há glamour, mas há aura. Eu vi, juro. Ou foram só meus olhos de psicanalista e professor. Foi naquele lugar relativamente simples que foi processada a primeira técnica de psicoterapia e uma teoria peso pesado entre as ciências humanas.
Este é um endereço clássico para quem conheça um pouco de psicanálise. Foi onde Freud (1856-1939) viveu desde 1891, muito antes de criar a psicanálise e se tornar conhecido. Ele só se mudou em 1938 quando, já com 82 anos e quase morrendo de câncer, viu a Áustria ser anexada sem resistência pela Alemanha nazista e exilou-se em Londres. Só conseguiu fazê-lo pela intervenção (nome elegante para suborno) da princesa grega Marie Bonaparte, sua paciente. E ele só aceitou se mudar após sua filha Anna ter passado um dia detida pela Gestapo.
Freud custou a se tornar famoso e, durante a primeira guerra, sua família chegou a passar necessidades. Mas depois, nos anos 20 ou 30, já célebre, ele certamente poderia ter se mudado para um lugar maior e mais confortável. A casa onde foi exilado em Londres, ampla e situada num endereço elegante (Maresfield Gardens, 20) por exemplo, parece mais de acordo com sua importância. Lá ele viveu por cerca de um ano até sua morte. Um dos biógrafos de Freud foi seu médico, Max Shur. Ele conta que, nos últimos dias em que Freud ainda podia se comunicar, ele combinou com o médico e a filha Anna que sua vida não deveria ser estendida a qualquer preço. Quando sofrimento se mostrasse inútil, doses de morfina deveriam ser administradas a ele até sua morte. Dias depois, já sem poder falar e em grande sofrimento, uma troca de olhares foi suficiente para que os três entendessem que havia chegado a hora. O médico cumpriu com o seu compromisso e administrou a eutanásia consentida.
Voltando à casa de Freud em Viena, nesta visita me questionei sobre o motivo pelo qual ele nunca teria querido se mudar de sua casa para uma mais confortável. Numa associação minha, talvez a escolha em ficar na mesma casa por toda a vida guarde coerência com a serenidade e humildade de Freud ante a vida e mesmo ante o alcance que via na técnica que criou. Nada de revoluções no comportamento, nada de previsão e controle ou elogio ao sucesso; mas um trabalho contínuo de tomada de consciência e simbolização de perdas. Nada de prometer uma outra vida, mas o convite a apropriar-se de si (dos próprios desejos, da própria história). Coisas da vida comum, afinal. Assim como são comuns e estranhos os corpos nus pintados por Lucien Freud: avô e neto compartilham a ideia de que a busca pelos ideais esmaga a vida possível; ambos se dedicam a mostrar uma humanidade crua e pulsante.
Ao longo de sua obra, Freud definiu por algumas vezes a finalidade de um processo psicanalítico. Uma das definições de que mais gosto propõe que uma análise deva levar uma pessoa a se dar conta de que ela tem um inconsciente. Não se trata de esgotá-lo ou vencê-lo, mas de ganhar consciência e tolerância sobre o quão pouco nos conhecemos e controlamos. Mas a definição que prefiro é a que sugere que uma análise deve ajudar a pessoa a melhor amar e trabalhar. Singelo e gigantesco. Amar e trabalhar envolvem os mais complexos compromissos entre forças internas e externas. Algo a ser feito numa casa de verdade com gente de verdade; numa clínica de verdade, lidando com o sofrimento real das pessoas. Longe da assepcia do laboratório, num lugar imperfeito e estranhamente familiar.