As Ciências Humanas são ciências fracas?

Pedro de Santi

As Ciências Humanas nasceram na virada do século 19 para o 20. Sua posição entre outras formas de produzir conhecimento não é simples. Ora a sociologia, a psicologia ou a antropologia tomam o Homem como seu objeto de estudo e entregam seus resultados de pesquisa e conhecimento acumulado, como toda ciência; ora se colocam numa posição de discutir abstrações, alheias à solução dos problemas concretos. Esta lente bifocal gera com frequência certo desconcerto e exige a capacidade constante de mudar o foco.

Isto, que pode parecer inconsistência ou sugerir sua irrelevância para a solução de problemas práticos, revela na verdade duas posições concomitantes daquele campo de saber: se o homem pode ser e é objeto de conhecimento, ele é ao mesmo tempo o sujeito dele. O conhecimento científico é uma atividade humana, sustentada em pressupostos relativos à sua racionalidade e capacidade de objetividade.

Tocamos aqui problemas centrais nas condições de produção de conhecimento e da psicologia humana.

O filósofo francês Michel Foucault (1926-1984) dedicou uma de suas obras a realizar o que chamava de uma arqueologia das Ciências Humanas: As palavras e as coisas (1966). A obra é extremamente complexa, mas tomemos alguns de seus fios condutores para nossa compreensão do que sejam as Ciências Humanas e qual o motivo do estatuto ambivalente que costuma ser atribuído a elas.

Foucault observa, como fizemos antes, a condição bifocal das Ciência Humanas: ora elas aparecem como ciências propriamente ditas, ainda que olhadas com certo desdém por seus pares; ora se apresentam com a pretensão de serem superiores e anteriores às demais formas de conhecimento, ao considerar como algo menor a “aplicação” que o mercado lhe solicita.

Nas palavras de Foucault, esta situação dupla se deve ao fato de o Homem ocupar dois lugares na cadeia da produção de conhecimento:

“O modo de ser do homem, tal como se constituiu no pensamento moderno, permitiu-lhe desempenhar dois papéis: está, ao mesmo tempo, no fundamento de todas as positividades, e presente, de uma forma que não se pode sequer dizer privilegiada, no elemento das coisas empíricas” (p. 361)

Ele é fundamento de todas as positividades na medida em a ciência é um atividade humana, depende de sua capacidade de observação, objetividade e racionalidade. Embora isto seja frequentemente esquecido, as condições de percepção, representação e entendimento do Homem definem as condições e limites da ciência. As ciências “fortes” dependem de que o homem seja tomado como alguém racional e capaz de ser objetivo e impessoal com relação ao seu objeto de conhecimento. É uma tarefa importante do procedimento científico procurar afastar completamente as dimensões subjetivas, pessoais ou de interesse que levariam a uma distorção no processo de produção e nos resultados obtidos.

De uma forma geral, as Ciências Humanas, ao se debruçarem sobre o Homem como seu objeto de estudo, acabam por descobrir o quanto ele é determinado por diversas ordens que escapam ao seu controle e, de fato, uma compreensão profunda de sua mente e comportamento não pode ser isolada de sua inserção social e política. Ele é determinado por ordens sociais, econômicas, biológicas, psicológicas, etc.; e isto aponta para uma condição humana na qual a vontade consciente e auto-determinação não tenham todo o poder que o Humanismo moderno presume. A liberdade e racionalidade absolutas humanas são ilusões. O que parecia indicar que as Ciências Humanas fossem fracas seria, de fato, sua atitude crítica ante os pressupostos da própria ciência. Sobre isto, diz Foucault:

“Daí esta dupla e inevitável contestação: a que institui o perpétuo debate entre as ciências do homem e as ciências propriamente ditas, tendo as primeiras a pretensão invencível de fundar as segundas, que, sem cessar são obrigadas a buscar seu próprio fundamento, a justificação de seu método e a purificação de sua história, contra o “psicologismo”, contra o ” sociologismo”, contra o “historicismo”. (p. 363)

O conhecimento produzido nos padrões científicos é reconhecido como sério e bem fundamentado. Ele é sempre provisório, uma vez que nunca teve acesso à totalidade dos fenômenos que estuda e sempre pode avançar, mas, para o senso comum, dizer que algo foi descoberto pela ciência equivale a dizer que aquilo é verdadeiro.

Há uma aura cercando expressões como ‘resultado de pesquisa científica’ ou ‘novas descobertas da ciência’: tais expressões transmitem imediatamente confiabilidade, como se se tratasse de algo absoluto. Em geral, não se questiona a fonte ou o procedimento. Não vou desenvolver esta questão aqui, para não nos tirar do foco, mas é sempre bom lembrar que um experimento feito em uma sala de aula (mesmo norte-americana) não pode ter seus resultados generalizado e um café tomado na casa de alguém não é pesquisa etnográfica….

Voltando à confusão entre a ciência e a ‘verdade’, ela é perturbada justamente pelas Ciências Humanas, e em vários aspectos: em primeiro lugar, elas lembram que a ciência não é absoluta, pois sempre avança, tem história e pertence a uma tradução filosófica e social específicas; em segundo, elas questionam o fundamento mesmo da ciência, ao colocar em questão a estabilidade do sujeito do conhecimento. Se o Homem não é capaz de assumir uma condição de sujeito neutro de conhecimento, o projeto científico não pode ter a consistência que a ele se costuma atribuir.

O cientista crê poder permanecer alienado da base humana que sustenta a própria atividade experimental. Destaquei o termo ‘ crê’, justamente para evidenciar que lá onde se apresenta um discurso que se pretende verdadeiro e objeto, está um posicionamento social e subjetivo.

As Ciências Humanas, em seu melhor exercício, talvez sofram de seu mérito: não poder se esquecer dos limites e condições da ciência, o que as inclui. Sua melhor entrega não deve ser “tecnologia do comportamento”- para controlar o consumidor, o funcionário ou a si-mesmo -, mas sim se sustentar como pensamento crítico e questionamento ético.

E as ciências e técnicas que querem poder se esquecer daquilo que as Ciências Humanas representam, bem que têm tentado se apoiar na anatomia cerebral e na genética para assim poder ignorar e desqualificar aqueles parentes inconvenientes.

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