As ciências Humanas são ciências fracas? (parte 2)

Pedro de Santi

Este texto retoma um post neste Blog, do dia 15/08. Nele, trazíamos a reflexão do filósofo Michel Foucault sobre as Ciências Humanas em sua obra As palavras e as coisas (São Paulo: Martins fontes [1966], 1990). Na primeira parte, trabalhei a ideia de que há uma situação confusa nas Ciências do Homem justamente por ele estar nas duas pontas do conhecimento em questão; sujeito e objeto, concomitantemente. A modernidade se apoia na crença num sujeito soberano que submete tudo o demais como objeto de conhecimento, consumo, etc..

Nesta segunda parte, prossigo na ideia de que as Ciências Humanas se voltam especificamente ao que sobra e o que custa a cisão sujeito/objeto.

Foucault, observa que, desde suas origens, as Ciências Humanas são atentas ao que desapareceu sob o projeto moderno. Assim que se formula o Homem como objeto de conhecimento, desenha-se um impensado, o outro.

Quando se propõe uma categorização, constitui-se no mesmo ato um todo o campo das singularidades e daquilo que escapa dela. Foucault propõe que seja justamente a este ruído e à estrutura da cisão sujeito/objeto que se revela sob o pensamento moderno que configura o interesse das Ciências Humanas: elas se voltam ao ‘outro’.

Elas lidam com o que escapa à apreensão: como na ideia de alienação, de Marx; de estruturas de parentesco da antropologia; a estrutura da linguagem da semiótica; ou de inconsciente, na psicanálise. E o projeto das Ciências Humanas é trazer à luz este impensado, evidenciar as estruturas invisíveis que organizam o campo dos fenômenos; justamente uma dimensão simbólica que escapa aos objetos apropriados à produção de conhecimento do positivismo.

Assim, é recusada a possibilidade de tratar o Homem empírico tornado objeto isolado (isolável) de seu contexto relacional e cultural. Diz Foucault:: “(…) pode-se dizer que o conhecimento do Homem, diferentemente das ciências da natureza, está sempre ligado, mesmo sob a forma mais indecisa, a éticas ou a políticas” (p. 344).

Para ele, a psicanálise e a história seriam paradigmas das Ciências Humanas:

“Desvelando o inconsciente como seu objeto fundamental, as ciências humanas mostravam que havia sempre o que pensar ainda no que já era pensado ao nível manifesto; descobrindo a lei do tempo como limite externo das ciências humanas, a história mostra que tudo o que é pensado o será ainda por um pensamento que ainda não veio à luz (…) a figura do homem: uma finitude sem infinito é, sem dúvida, uma finitude que jamais tem fim, que está sempre em recuo com relação a si mesma, à qual resta ainda alguma coisa para pensar no instante mesmo em que ela pensa, à qual resta sempre tempo para pensar de novo o que ela pensou” (p. 389).

O homem é a um só tempo um ser agente e aquele que se auto-observa, reflexivamente. É inevitável que, neste processo reflexivo, ele se transforme enquanto agente e modifique suas ações, o que provoca nova reflexão e transformação, ao infinito. O Homem seria um objeto fugidio para si-mesmo por definição e o conhecimento produzido sobre ele estaria sempre defasado e por se cumprir .

Qualquer tentativa de se definir a natureza ou a verdade sobre o homem sempre irão se deparar com esta impossibilidade. As Ciências Humanas tem como uma de suas funções fundamentais “fazer lembrar” a insuficiência de qualquer categorização ou definição, incluindo a delas próprias.

Para tornar mais tangível a dificuldade em tomar o Homem como objeto de ciência, como outros, conto um episódio. Há alguns anos, foi-me proposto que montasse um curso de especialização em psicanálise numa faculdade de medicina. Durante a elaboração do curso, foi solicitado que se incluísse nas aulas uma prática comum àquela formação: que o atendimento de pacientes em psicoterapia fosse assistido por grupos de alunos. Precisei então explicar precisamente que o objeto específico da intervenção psicoterapêutica é uma pessoa (no sentido que vimos acima) e que isto acrescentaria um elemento que alteraria por completo a sessão e representaria um problema ético.

Pode-se imaginar que a presença de alunos num exame de joelho, olho ou cérebro não altere em nada a condição do órgão examinado. Num exame psiquiátrico ou ginecológico, já se pode conceber que possa haver constrangimento, tensão e alguma alteração dos resultados obtidos em comparação com um exame realizado em privacidade médica. Mas quando o objeto específico é a própria pessoa, é fácil perceber que a presença de pessoas estranhas ao processo inibiria a expressão do paciente, com a exposição de sua vida e intimidade. Mais do que isto, se a própria natureza da intervenção é o compromisso com a vida da pessoa, este uso didático da sessão consistiria num violência anti-ética.

Foucault considera ser mesmo cabível a pergunta sobre o se termo ‘ciência’ é adequado na expressão Ciências Humanas. Talvez, naquilo que elas têm de mais característico, de fato elas realmente não o sejam; elas seriam, então formas de saber mais próximos da filosofia. Mas não a filosofia como conjunto dos sistemas pensamento formulados por inúmeros autores ao longo de 2500 anos; a filosofia interrogação constante sobre o mundo e sobre si-mesmo.

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