Por Pedro de Santi
No último fim de semana, chegou ao meu “Feed de notícias” do Facebook um mesmo post, vindo de três fontes distintas, sem relação direta entre si. Cada post contava com inúmeros comentários de admiração pelo conteúdo e concisão do texto. Virou um pequeno viral.
Nosso diretor da Faculdade -Luiz Fernando Garcia- deu-se o trabalho de rastrear a fonte (o que por vezes é impossível numa rede social) e indicou Marta Medeiros como a autora.
Também curti e compartilho aqui algumas observações adicionais. Não há dúvida de que um ambiente hostil e briguento produz inseguranças marcantes nas crianças. E que provavelmente reproduzirão ambientes assim em suas vidas adultas.
Mas vamos à primeira frase: “crianças não conseguem processar direito o que vivenciam”. Embora se possa compreender o que a autora queira dizer, a situação pode ser melhor pensada se colocada em outros termos. Cada pessoa vive e registra suas experiências dentro de seus recursos simbólicos. É um tema clássico da psicanálise o abismo existente entre o universo simbólico de um adulto e o de uma criança. Gestos e palavras de um podem se tornar enigmas para o outro. Há uma “confusão de línguas”, na expressão de Sandor Ferenczi. Trata-se de uma via de mão dupla, mas imagina-se que o adulto tenha melhores recursos para absorver o enigma infantil. O enigma implantado numa criança tem um potencial traumático.
O importante aqui é marcar que não são apenas as agressões ou hostilidades que tem este potencial. Todo e qualquer gesto do ambiente adulto poderá ser interpretado como enigmático.
O ser humano existe no universo da linguagem e não se pode prever como cada um atribuirá significado ao que lhe ocorra. Em termos simples: o que é traumático para uma pessoa pode não sê-lo para outra. Por isso, previsão e controle positivistas passam longe da gente, para o bem e para o mal. Um dos mal entendidos sobre o avanço espantoso e atual das neurociências é este. Imaginar que elas possam se tornar instrumentos de controle (e virar auto-ajuda…): como tomar decisões? Como ser líder? Como garantir o sucesso de uma campanha? Como educar um filho? Este velho sonho positivista de controle sempre se chocou com a dimensão interpretante humana.
Uma frase repetida adiante no pequeno texto insiste: a criança precisa ser amada. Mesmo tendo em mente o quão pernicioso é um ambiente hostil, ocorreu-me quanta violência é perpetrada em nome do amor. Um ambiente que se apresente como puramente amoroso, sem agressões, conflitos ou demandas às crianças seria, em primeiro lugar, sobre-humano. Provavelmente forçado ao custo de muita repressão e hipocrisia. E a criança também se veria na tarefa de tentar interpretar, com dificuldade, esta situação.
“A criança só precisa de amor” pode ser vivido como uma demanda terrível aos pais. Como oferecer só amor? O que fazer com tudo aquilo que sinto que não é amor: cansaço, irritação, frustração? Devo me anular com medo de que meus sentimentos danifiquem meus filhos?
O amor oferecido pode também ser vivido como enigmático às crianças: como correspondo a ele? O que o outro quer de mim? Que monstro eu sou, uma vez que não sinto apenas amor?
No texto, o amor é algo distinto das brigas e do consumo. O que é sugerido como algo simples- só precisa de amor- pode ser interpretado como “precisa de amor e mais nada”. Exclua e cale o que não se encaixar; nada pode compensar, reparar ou amenizar sua falta. Haja culpa ante este amor compacto.
Há formas de violência explícita e formas de velada, sob o nome de amor incondicional. Crianças tem uma antena ótima para o não dito e são por ele impactadas.
Enfim, posso curtir e compartilhar a reflexão de Marta Medeiros, inclusive no que diz respeito à oferta de amor, mas vejo nele algo menos compacto, com presença, compromisso, brigas e espaços.
Talvez valha a pena exigir menos do amor.