Afinal, de quem são as canções

Cézar Veronese, Professor do CPV Vestibulares

Exigências, manias, obsessões e impasses são inseparáveis tanto do artista quanto do homem João Gilberto. Mas dessa vez sua exigência vai além dos caprichos de uma criança pirracenta e se justifica plenamente. João acaba de ganhar na Justiça o direito de posse das matrizes de seus primeiros quatro antológicos discos.
Matrizes é o nome dos tapes originais em que foram feitas as gravações e que são usados para a reedição de um disco. A Justiça concedeu-lhe os direitos após o artista dar garantias de que estes serão depositados em um estúdio capaz de preservá-los em perfeitas condições. Os tapes pertencem à EMI-ODEON, na qual foram gravados os quatro primeiros discos de João Gilberto.
A briga se arrasta há anos pelo óbvio e escandaloso motivo de que a gravadora não relança esses discos. Por outro lado, como detentora legal dos direitos sobre os mesmos, impede que os mesmos sejam relançados por outra gravadora. E quem dança na história, além do artista, é o público, que permanece proibido de adquirir exemplares de quatro discos em que, passemos o pleonasmo, todas as faixas são obras-primas da moderna música popular brasileira.
O quiproquó lança luzes sobre uma questão a ser pensada: é correto uma gravadora ou uma editora deter os direitos autorais de uma obra quando não quer relançá-la, apesar do reconhecido valor da obra em questão? Vejamos outros exemplos.
Em 2008 a Universal Music lançou uma caixa com 17 discos de Ney Matogrosso. Nela estão, entre outros, o disco ÁGUA DO CÉU – PÁSSARO, primeiro trabalho solo do artista, de 1975, esgotado há mais de 30 anos. O público ficou privado durante décadas desse disco excepcional e hoje, se desejar adquiri-lo, terá que desembolsar 400,00 para comprar a caixa com os 17 cd’s. E quando esta se esgotar? SOL NEGRO, de Virgínia Rodrigues, é um dos discos mais magníficos das últimas décadas. Permanece fora de catálogo há anos, não toca no rádio e a cantora não tem espaço em programas televisivos!
A MANIPULAÇÃO DO PÚBLICO (POLÍTICA E PODER ECONÔMICO NO USO DA MÍDIA), de Edward S. Herman e Noam Chomsky, é uma minuciosa análise do caráter tendencioso da mídia norte-americana na cobertura de conflitos e guerras, variando o enfoque de acordo com a posição do país envolvido, isto é, quando ele é ou não aliado da política dos EUA. É uma leitura mais do que obrigatória para qualquer cidadão que se pretenda informado. No Brasil, o livro foi lançado em 2003, esgotou-se e nunca foi reeditado. Também de 2003, em primeira, única e esgotada edição, é O FANTASMA DO REI LEOPOLDO, de Adam Hochschild, um dos maiores livros já escritos sobre o colonialismo na África.
Recentemente, os herdeiros de Graciliano Ramos se recusaram a renovar o contrato com o diretor Sylvio Back sobre os direitos de filmagem do romance ANGÚSTIA. O diretor possui os direitos há dez anos e não realizou o filme. Ao mesmo tempo, impediu que outro diretor transpusesse o livro para as telas.
A lei do direito de publicação deveria ser revista. Se o editor mantiver a obra fora de catálogo por um determinado período, digamos, por exemplo, cinco anos, o artista ou os seus herdeiros deveriam ter o direito automático de romper o contrato. Assim, público e artista não provariam a “imensa dor” de ficarem desafinados.

Comentários estão desabilitados para essa publicação