Carlos Frederico Lucio
Exatamente neste dia 15 de março, como bem lembrou a colunista da Globonews, Renata Lo Prete, completamos exatos 30 anos de consolidação da retomada da democracia, marcada pela posse do ex-presidente José Sarney, em 1985. Simbolicamente (coincidência ou não), o Brasil viu uma das maiores mobilizações populares de sua história. Alguns jornais estão, agora com mais consistência, fazendo a devida comparação com a mobilização de massa das “Diretas Já” (embora, em tese, tivesse mais cara de “Fora Collor”). Sem dúvida alguma, ao contrário do que afirmaram os porta-vozes do governo ontem, este movimento teve (e tem) sim uma importância enorme. E, sinceramente, eu só o vejo com perspectivas de crescimento. Mas quero também deixar claro que, ao contrário do entusiasmo com que vi as manifestações de junho de 2013 (que não deram em grande coisa – basta ver o que fizemos nas eleições, especialmente as parlamentares, logo a seguir – assunto sobre o qual já refleti aqui neste blog no artigo “A que distância as urnas estão das ruas“) e embora reconheça o enorme valor para a democracia de ver um povo inteiro nas ruas, manifestando vida política para além do partidarismo tacanho, personalista e coronelista que tradicionalmente temos no país, desta vez vejo com ressalvas e reservas. E isso não é em tom desqualificativo, muito pelo contrário. É em tom crítico de quem reconhece que há muito mais significados por trás do óbvio e opta por um pouco de cautela nas conclusões.
Antes de prosseguir, gostaria de pontuar algo pessoal, até para esclarecer um pequeno debate feito em um post meu no Facebook, especificamente com relação às atuais manifestações. Desde que o resultado das eleições foi proclamado, embora tenha votado na presidente Dilma, eu passei a assumir uma postura de oposição bastante crítica ao atual governo. E, ao contrário do que possa parecer num leitura mais superficial, como alguns preferiram fazer (inclusive recebi algumas acusações de apoiar a atual situação do governo federal), eu me sinto atualmente num lugar confortável. No primeiro turno, não votei em Dilma. No segundo, havia confessado a vários amigos o meu desejo de anular o meu voto (ou até mesmo votar no PSOL) tamanha a minha insatisfação com a gestão Dilma em várias áreas (inclusive a social que, afinal, foi um dos pontos que me levaram a decidir o meu voto – só para lembrar, uma das piores políticas indigenistas da história recente do Brasil, como bem analisa Eduardo Viveiros de Castro). Entretanto, a perspectiva de vitória de um candidato de oposição que não convencia nem a elite intelectual do seu partido (mas o bancou por falta de opção), me fez decidir dar o tal “voto útil”, chegando a assumir uma postura de campanha anti-PSDB (mais do que pró-PT) no meu Facebook. Postura que relativizei depois da eleição por entender que esta polarização se justificava num cenário de disputa eleitoral, mas não faz sentido com o resultado consolidado, quando o jogo passa a ser outro. Assim, a despeito de reconhecer o enorme valor para a democracia, continuo crítico e cético com relação à principal motivação alegada para estas manifestações.
Creio que o que o primeiro elemento que saltou aos olhos da Nação foi que, ao contrário do que muitos (inclusive eu) temiam, o clima ontem foi o mais interessante nos últimos tempos, na vida política e social do Brasil. Lembrou-me não somente as “Diretas Já”, mas alguns belos momentos das passeatas de 2013 e também os primeiros momentos (os mais políticos) da Parada Gay em São Paulo. Uma festa da democracia. Cidadãos construindo a cidadania. Independente da divergência de números (especialmente em São Paulo – assunto que pode ser pauta para uma reflexão à parte – e já está no debate midiático hoje), o fato é que, mais uma vez, passados dois anos da última grande mobilização de massa, o Brasil foi às ruas protestar. E diluiu um pouco os traumas da violência e da truculência registrados nos episódios de 2013 que, diga-se de passagem, foi um dos fortes elementos que contribuíram para diluir o caráter potencialmente transformador daquelas manifestações.
Contra o quê ou sobre o quê se protestava neste dia 15 de março, parece que ainda precisaremos um tempo para refletir. Óbvio que a motivação direta era contra a corrupção e contra o atual governo (especialmente contra as medidas impopulares e os titubeios e incertezas no campo econômico). Mas, como antropólogo de formação, prefiro tentar olhar um pouco mais além das aparências. A Antropologia é a ciência que busca, no campo coletivo, fazer leituras do tácito para além do óbvio. É assim que o grande antropólogo norteamericano Marshall Sahlins nos ensina que por trás das razões práticas (aquilo que explicitamente evocamos para justificar nossos atos) estão sempre operando e nos movendo as ocultas razões simbólicas (aquilo que inconscientemente – não no sentido psicanalítico, mas antropológico do termo, ou seja, valores culturais – alimentam e orientam nosso comportamento, impelindo-nos a agir, sem que tenhamos necessariamente consciência deles). Assim, parece-me claro que, embora seja o estopim aparente, o protesto anticorrupção não foi o único elemento mobilizador para o evento de ontem. O que me leva a pensar isso? O simples fato de que desde sempre nós brasileiros dizemos protestar contra a corrupção mas seguimos sendo um dos campeões do mundo (segundo dados da Transparência Internacional) em corrupção. Dizemos ser contra governos e políticos corruptos, mas sempre elegemos o que há de mais conservador e arcaico no campo político. E fingimos que não temos responsabilidades nisso, passando a adotar uma postura de “nós” x “eles”. Esta enorme contradição estrutural e estruturante da sociedade brasileira merece, no meu entendimento, atenção especial. Tenho chamado este aspecto de um “eterno dilema da quase modernidade brasileira”.
Esta constatação alimenta minhas reservas com relação à crença de que algo efetivamente mude entre nós. Pelo menos não enquanto não houver esta mudança de caráter estrutural. Difícil, mas não impossível. E isso tem sido exaustivamente tematizado por algumas pessoas (inclusive eu já escrevi e falei muito sobre o tema). O principal mote aparente das mobilizações atuais é algo endêmico e sistêmico na cultura brasileira: a corrupção não é uma prerrogativa do Estado, nem existe apenas na esfera pública ou privada das grandes movimentações financeiras orquestrada por interesses empresariais. A lógica que a alimenta está presente de forma tão profundamente enraizada na mentalidade brasileira (concretamente, de cada um de nós, manifesto em ações cotidianas) que já se tornou um hábito do para o qual não prestamos atenção e não damos o devido valor. Foi incorporado como um (entre tantos outros) traço cultural. Não lhe prestamos a devida atenção. Quando muito, olhamos de forma jocosa (como nas piadas sobre o “jeitinho”, por exemplo), num deboche que parece ser uma estratégia inconsciente para diluir o peso e o horror do que isso significa na nossa vida privada, com suas consequências desastrosas na construção de uma sociedade profundamente desorganizada e com um custo social imenso. Sem estabelecer as devidas conexões entre essas práticas cotidianas e os demais níveis catastróficos da corrupção no Estado, convenientemente escolhemos só prestar atenção quando ele atinge dimensões tusunâmicas de escândalos como os revelados pela atual Operação Lava-Jato. Eu diria mais: como no nosso campo privado, até podemos prestar atenção, mas só quando ele se refere aos atos praticados pelo outro. No meu caso, é sempre “especial” e há sempre uma “justificativa”. Como nos lembra o historiador Leandro Karnal, isso começa desde cedo, quando alimentamos nossas crianças com o que ele chama de “elementos de corrupção”: “Meu filho, se você fizer isso, eu te dou aquilo!” (Confira a fala do Leandro num depoimento ao Jornal da Cultura.)
Nesse sentido, as práticas da corrupção no Estado evidenciam, em forma de hipérbole, o grande horror que são os efeitos, no campo social, dos atos de corrupção que expressam tudo aquilo que destrói a boa sociabilidade: o egoísmo, a ganância, a inveja… enfim… os valores morais que nossa religiosidade formal tanto insiste em combater, mas que nós insistimos em praticar.
É fato que, hoje, o governo se encontra num grande dilema construído por sua própria incompetência e enorme inabilidade política e administrativa. Além de uma debilidade que é evidente. Dizer simplesmente que não tem culpa da atual situação (como teria dito ontem a presidente a alguns assessores), não o isenta desta enorme responsabilidade. Pelo contrário, só expõe ainda mais suas fragilidades e o predispõe ao fácil ataque.
Entretanto, apesar de reconhecer isso, eu queria chamar a atenção também para o fato (não menos grave) de que não é só o governo que se encontra neste imbróglio ético. É também a própria sociedade brasileira. Afinal, retomando o ponto inicial do texto, precisamos com urgência pensar sobre e responder a esta pergunta profunda: se foram dezenas de milhares de pessoas para as ruas protestar contra a corrupção e se, desde sempre, fazemos isso reiteradamente na nossa esfera privada (reclamando no ônibus, no cabeleireiro, no shopping, nas rodas de bar etc.), por que seguimos sendo, desde sempre, uma das sociedades mais corruptas do mundo? E por que temos tanta dificuldade em punir com rigor e exemplo atos escabrosos de corrupção?
São perguntas fortes. Neste contexto, adquire um peso simbólico interessante a profusão de camisas da seleção que vimos (o que, diga-se de passagem, não se via nem nas Diretas Já, nem no Fora Collor). Evocando o argumento da razão prática de Marshall Sahlins, óbvio que posso ouvir: “Ah, é o que estava à mão!”. Mas não é esse o ponto: a polarização “Nós” (sociedade, vítimas da corrupção) X “Eles” (políticos, corruptos), assume, significativamente, ares de embate esportivo. Não é mérito nem demérito. Mas bom para pensar.
A resposta no fundo, sinto dizer, não está no Estado (muito menos na polarização política), não está nas ruas, mas dentro de casa. Consolidação da Ética no campo coletivo e público só é possível como manifestação, como expressão da vida privada. Não faz sentido dissociar as duas naquilo que já chamei de um dilema nacional: estamos sempre na “quase modernidade”.