Aborto: de quem é a vida, afinal?

Pedro de Santi
Serviço. Debate promovido pelos cursos de Ciências Sociais e Jornalismo da Graduação da ESPM/SP, no dia 29/08, às 11:00 hs, no Auditório Kotler. Com a ginecologista e obstetra Maria Eugenia de Santi e os professores Denilde Holzhacker, Andrey Mendonça e Pedro de Santi.
O debate acima, assim como seu ótimo título, foi criado pelo Coordenador do curso de Ciências Sociais, o Prof. Mario René.
Falar sobre aborto é abordar um daqueles temas delicados, onde se cruzam questões relativas a sofrimento humano, definição de vida, valores religiosos, políticas públicas de saúde, o direito à vida, a liberdade individual versus interesses públicos.
Como um psicólogo clínico que já atendeu muitas mulheres que realizaram o aborto, ou o consideraram, a primeira coisa a dizer é que o aborto nunca é desejado. Ele não é um método anticoncepcional que integre o planejamento familiar.
Quando ele se coloca como possibilidade, algo importante já deu errado. Uma gravidez indesejada pode se dar por descuido nos cuidados anticoncepcionais ou como algo muito pior, a violência de um estupro. Além destas situações, mesmo uma gravidez desejada pode se deparar, precocemente, com uma síndrome genética ou má formação importante no embrião; e então se coloca a questão sobre dar ou não continuidade à gestação.
A situação pode ser abordada por uma perspectiva de princípios e por uma prática.
Da perspectiva dos princípios, consideramos que, numa sociedade democrática, direitos do indivíduo à vida e sobre seu corpo devam ser garantidos. Desta premissa, deriva-se que a gestante tenha direitos sobre o processo; mas então se coloca a questão do direito à vida do embrião.
Aqui reside o principal impasse: a partir de qual momento se considera que nasça uma vida humana, dona de direitos? Há quem considere que, uma vez que o embrião seja formado, ele já os teria; para algumas concepções religiosas, por exemplo, o embrião já traz uma alma. Lembro-me de uma paciente que descobriu precocemente uma má formação no embrião que lhe daria a perspectiva de pouco tempo de vida; o aborto foi considerado mas, por ser espírita, ela concluiu que se tratava de uma situação a ser vivida por todos; a gestação foi mantida e o bebê, de fato, faleceu com poucos anos de vida.
Mas há também quem considere que só haveria vida humana propriamente dita quando nascer uma consciência, ainda que rudimentar, e que estaria sustentada em determinado ponto da formação do sistema nervoso, próximo do terceiro mês de gestação. Há também a possibilidade de se considerar que só há vida individual após o nascimento, mas hoje esta posição não é muito defendida.
A determinação daquele limiar é essencial, uma vez que, antes dele, trata-se de uma só vida (a da gestante) e, a partir dele, duas. Antes deste limiar, trata-se do que a mulher deseja para si (seu corpo, sua história); a partir dele, o aborto passa a configurar a morte de um ser humano vivo, com implicações éticas e legais.
Da perspectiva prática, a discussão sobre aborto é outra. Abortos acontecem e continuarão a acontecer. Pelas restrições legais atuais, impõe-se à mulher que o faça quase sempre como contravenção, em condições muitas vezes privadas de atendimento profissional médico. Como costuma acontecer em nossa sociedade; este risco é relativo à condição social da mulher. A flexibilização do direito ao aborto produziria condições mais humanas sobretudo para mulheres que precisam do serviço público de saúde.

É importante dizer também que a forma como a questão costuma ser colocada induz a erros. Perguntar de forma simplória às pessoas, “Você é a favor ou contra o aborto?”, cria uma oposição entre selvagens que desprezam a vida gerada e fanáticos religiosos que desprezam o desejo ou condições de vida da gestante e querem impor seus valores aos demais. Entre os extremos, como sempre, existe a vida. Quem apoia o aborto, em geral considera que devam haver condições básicas para ele: como o limite de tempo até o terceiro mês; ou que ele seja autorizado somente em caso de estupro. Neste último caso, impossibilitada de abortar, a mulher além de violentada, teria que guardar para sempre o fruto daquela violência e, mesmo, ver-se vinculada ao estuprador como pai de seu filho, como pretendia o “Estatuto do nascituro”, há alguns anos.
Também não conheço quem considere que uma mulher que não queira abortar seja obrigada a faze-lo. Pessoas que não concordem com os princípios que justifiquem o aborto simplesmente podem não abortar, sem privar as demais deste direito. Num estado laico e democrático, deve ser assim.

Volto ao ponto de que o aborto envolve muitas dimensões de sofrimento, relativos ao desejo de maternidade e identidade de uma mulher. Assistimos cotidianamente aos estragos produzidos na formação de uma criança que se percebe não desejada: ter filhos é a coisa mais séria que se pode viver e requer (ou deveria requerer) desejo e comprometimento. Assistimos igualmente ao sentimento de culpa de mulheres que, mesmo que tenham feito a melhor escolha ao realizar um aborto, levam consigo uma marca, à qual acabam por atribuir infortúnios futuros, sobretudo numa eventual dificuldade para engravidar adiante.

É preciso sempre voltar a discutir estas questões e manter uma legislação que acompanhe os valores predominantes na sociedade.
Este debate traz esta discussão para o plano universitário.

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