A Publicidade e a Política

Por Cézar Veronese
Professor do CPV

Há algumas semanas destacamos neste espaço o filme NO, de Pablo Larraín, sobre o plebiscito a respeito da permanência ou não de Augusto Pinochet no poder, em 1988, depois de quinze anos de ditadura.
Acaba de estrear em São Paulo o documentário O DIA QUE DUROU 21 ANOS, assinado por Camilo Tavares, filho de Flávio Tavares, um dos maiores jornalistas que o Brasil já conheceu, e um dos presos políticos trocados, em 1969, pela libertação do embaixador americano Charles Elbrick. A história desse sequestro está contada no documentário HÉRCULES 56, de Silvio Da-Rin, disponível em dvd.
O DIA QUE DUROU 21 ANOS traz à tona uma página pouco elucidada da história política recente do Brasil. O diretor realizou uma pesquisa de fôlego em arquivos secretos do governo americano para reconstituir a atuação de Lincoln Gordon no desmantelamento do governo de João Goulart, consumado com o golpe de 64, e a consequente instauração da ditadura militar no Brasil, que se prolongaria por 21 anos, até a abertura política com a eleição de Tancredo Neves.
Após a Revolução Cubana, o governo Kennedy teme o alastramento do comunismo no Ocidente. Gordon, por conhecer português e ser um estudioso da economia brasileira, é designado para uma missão no Rio de Janeiro. Tornou-se, assim, um personagem chave da história política contemporânea brasileira. O governo americano temia o comunismo, mas foi Lincoln Gordon quem, juntamente com outros adidos da Cia, como Vernon Walters, convenceu a Casa Branca de que o governo de Jango era de extrema esquerda.
Junto com o Exército, tornou-se o articulador maior do golpe de 64 e de seus desdobramentos. E uma das estratégias do governo militar foi a propaganda política. Mais claramente: o intencional alastramento do medo. Qualquer cidadão a reivindicar um direito mínimo contrário à ideologia do regime era considerado subversivo. E aqui entra em cena o papel da publicidade.
Foram criados o IPES (Instituto de Estudos Sociais), o IBAD (Instituto Brasileiro de Ação Democrática) e, mais tarde, o famigerado SNI (Serviço Nacional de Informações). Ao primeiro, sob o eufemismo das pesquisas sociais, cabia, entre outras atividades, a produção contínua de filmes de propaganda para legitimar a ditadura. Esses filmes, marcados pelos signos da ordem e do bem-estar público, tentavam promover a ideologia do país grande, seguro e em crescimento. Ao mesmo tempo em que membros do SNI se infiltravam nas mais diversas empresas para identificar possíveis dissidentes do regime, os filmes eram exibidos nos cinemas, nas empresas e nas praças públicas de cidades do interior.
É um capítulo negro de nossa história e ilustrativo da força do discurso publicitário, a serviço, no caso, infelizmente, de uma causa nada nobre. O recorte desse momento histórico permite uma reflexão maior sobre o papel central da publicidade e do cinema na história política do século XX, o que vem a calhar com a estreia, na próxima quinta-feira (04.04) do É TUDO VERDADE, festival internacional de documentários que alinha São Paulo no roteiro das grandes mostras internacionais do gênero.
Uma das frentes do Festival é a Retrospectiva, este ano voltada para uma homenagem ao diretor russo Dziga Vertov, pioneiro do documentário político, na então recém estabelecida URSS, na década de 1920. Os filmes de Vertov foram recebidos com entusiasmo no calor dos acontecimentos e posteriormente acusados de “extremistas” e “radicais”. O É TUDO VERDADE apresentará oito programas especiais desses filmes, bem como debates com a presença de Adelheid Heftber, curadora do Austrian Film Museum, instituição que concentra o mais significativo acervo de Vertov.
Voltando ao Brasil. A propaganda política pode se manifestar em filmes explicitamente declarados e oficiais ou de forma disfarçada. Nessa segunda categoria enquadram-se, por exemplo, as reportagens especiais da Rede Globo, na segunda metade dos anos anos 80, sobre o “caçador de marajás”, como era designado o então governador de Alagoas, Fernando Collor de Melo, de resto pouco conhecido fora do seu estado natal. Cada matéria inserida no Jornal Nacional era, na verdade, uma peça publicitária estrategicamente elaborada. Quando os escândalos envolvendo o presidente eleito assumiram alcance nacional e passaram a contrariar certos interesses da emissora, ela mesma se encarregou de encabeçar a campanha pelo seu impeachment.
Se a história mais recente do Brasil, apesar dos novos escândalos diariamente presentes nas páginas dos jornais e no horário dos telejornais, não teve nada à altura do governo Collor, a publicidade não desapareceu. Uma questão nodal hoje em qualquer eleição, seja no âmbito municipal, estadual ou federal, é o marketing político. Onde está a verdade do candidato? Até onde o eleitor pode reconhecer as convicções profundas do candidato e a partir de que ponto elas se tornam a expressão de uma estratégia de marketing político? Onde desaparece o homem e surge o personagem? São perguntas cruciais que trazem à tona a ética, a verdade individual, os meios de comunicação, a responsabilidade do publicitário, o poder da linguagem e o nível de esclarecimento e/ou manipulação do público.
Considerando-se a importância do conteúdo de O DIA QUE DUROU 21 ANOS e a raridade do material discutido (há pouquíssimos livros de história do Brasil voltados para a análise do papel de Lincoln Gordon), seria lógico imaginar uma boa visibilidade para o referido filme. Não é a realidade. O documentário estreou na última sexta-feira (29.04) em apenas duas salas, na Reserva Cultural e no Espaço Itaú de Cinema do Shopping Frei Caneca. Na Reserva às 13h25 e no Frei Caneca às 17h30 e às 22h00 (sendo que na quarta-feira não haverá a sessão das 22h00). Na próxima sexta provavelmente será encolhido para apenas uma sala e uma ou duas semanas depois sairá de cartaz.
O que explica essa falta de visibilidade para obra de tamanha importância? O massacre da indústria cultural de massa, a ausência de políticas públicas para incentivo ao cinema nacional, a falta de interesse do público por temas políticos são algumas respostas possíveis. E o círculo vicioso se fecha: a falta de propaganda isola o público e a falta de público tenta justificar a falta de procura. Ou, por outro arranjo de palavras: não há interesse em esclarecer o público e criar um país de cidadãos críticos. Porque público alienado vota em palhaços, mulheres-fruta, estelionatários e candidatos ficha-suja.
O DIA QUE DUROU 21 ANOS reclama urgentemente o maior público possível. E para quem quiser se embrenhar pelos desdobramentos do Brasil pós-ditadura militar, recomendo a leitura de O QUE RESTA DA DITADURA, reunião de ensaios organizada por Edson Telles e Vladimir Safatle. Os textos são extremamente densos e fundamentam-se em minuciosas investigações acadêmicas. Mas a aridez da leitura compensa. E o leitor poderá comprovar, especialmente em “Relações Civil-Militares: o Legado Autoritário da Constituição Brasileira de 1988”, assinado por Jorge Zaverucha, que vivemos uma pseudo liberdade política. Para se franquear a tão aclamada “abertura política”, no esmorecer da ditadura, foram feitos vários acordos com os militares. E o que poucos sabem é que as Forças Armadas é que representam o poder soberano, hoje, no Brasil. O poder do Presidente da República, dos seus ministros e do Congresso Nacional é apenas simbólico. As Forças Armadas, se desejarem, podem tomá-lo a qualquer momento, apoiadas e legitimadas pela Constituição Brasileira de 1988!
Um dos caminhos para reverter essa realidade enganosa em que vivemos é o esclarecimento. O É TUDO VERDADE! é sempre uma excepcional oportunidade para inteirar-se sobre uma série de questões políticas nacionais e internacionais. E lembremos que a quase totalidade dos filmes exibidos jamais entrarão em cartaz ou serão lançados em dvd.
O festival acontece entre os dias 04 e 14 de abril, na Reserva Cultural, no Cine Livraria Cultura, no Centro Cultural Banco do Brasil, no MIS e na Cinemateca Brasileira. Todas as sessões (serão 82 filmes de 26 países) são gratuitas e os ingressos são distribuídos com uma hora de antecedência do início de cada sessão. Vale lembrar que as sessões do final da tarde da Reserva e da Livraria Cultura são concorridíssimas. Paralelamente, ocorrerão cursos e debates com convidados brasileiros e estrangeiros.
A sessão de abertura, na quinta-feira, é apenas para convidados. A partir de sexta são disponibilizados o programa das sessões e horários (gratuitamente) e um guia do festival (que deverá custar 5,00 e provavelmente só será vendido da Reserva e no Cine Livraria Cultura). Entre os destaques anunciados, está o novo filme de Sylvio Back, O UNIVERSO GRACILIANO (esta semana foi lembrado o 60.o aniversário da morte do escritor), ANTARTICTA, de Evaldo Mocarzel e o documentário de Eduardo Escorel (diretor, entre outros, de A ERA VARGAS) sobre o clarinetista Paulo Moura, falecido em 2010.
Mergulhem no filme de Camilo Tavares e no É TUDO VERDADE. Consciência crítica não se herda nem se adquire pret-à-porter. Constrói-se.
PS. O “É tudo verdade” exibirá um programa especial com alguns dos filmes produzidos pelo IPES para a propaganda do regime militar.

Comentários estão desabilitados para essa publicação