Por Pedro de Santi
Nos últimos meses, tivemos notícia de seguidos episódios nos quais vídeos gravados em contexto íntimo, com conteúdo sexual, foram tornados públicos pela internet. Alguns chegaram a ser viralizados pela internet, alcançando um universo muito além daquele em que surgiram, outros circularam de forma mais circunscrita. Em todos os casos, o efeito foi arrasador. Ao longo do tempo, fomos acostumados a saber que garotas que passavam por isto sofrem bullying em seus bairros e escolas, o que as levava a mudar de escola ou mesmo de cidade. Mas em alguns dos episódios recentes, a exposição parece ter causado a reação extrema do suicídio. Propositalmente, não vou nomear ou me referir a qualquer uma das situações específicas.
Há muitos aspectos envolvidos neste fenômeno, dentre eles, um cruzamento entre padrões extremamente arcaicos na forma de se entender a sexualidade e padrões atuais de dissolução das esferas pública e privada através das mídias sociais.
Da perspectiva da sexualidade, partimos de uma pessoa ou pessoas que incluem em seu prazer sexual o desejo de registrar aquele momento, por foto ou vídeo. Pode haver um elemento voyerista, exibicionista, fetichista, entre outros. Até aqui, a rigor, não há problema. De uma perspectiva psicanalítica, reconhecemos que há uma absoluta variedade na forma de as pessoas buscarem seu prazer. Nossa sexualidade não é orientada pela reprodução. Se as pessoas envolvidas na situação são capazes de discernir o que acontece (o que exclui crianças, pessoas com a consciência alterada, etc.) e estão de acordo, não há impedimento para que ingredientes variados possam compor a cena sexual.
Mas há então a ideia de que um dos membros da cena, sem o consentimento da outra (ou das outras), por exibicionismo ou simples descomprometimento com o outro, disponibiliza o conteúdo registrado ao público. Aquilo que foi vivido num certo contexto, com um certo sentido, é agora lido como pornografia. O resultado costuma ser patético, ridículo, como quase tudo o que fazemos de forma prosaica na vida privada. Aquele conteúdo passa então a ser objeto de gozação e se espalha: alguém deixou vazar um pedaço daquilo que todos lutamos por manter escondido. Nossa própria crueldade e nosso próprio voyeurismo são excitados. Como se todos não tivéssemos desejo e vida sexual. Naturalmente, o escárnio será maior por parte daqueles que sequer tenham sua própria realização sexual.
Soma-se agora à cena de nosso arcaico moralismo, nosso arcaico machismo. Homens que apareçam em tais imagens publicadas não sofrem o repúdio público, a não ser que estejam sendo flagrados em situação de adultério. Eles podem até ser celebrados pelo fato de serem registrados “comendo alguém”. Mas pesa sobre a mulher a marca da vulgaridade, da degradação. Em pleno século 21, uma mulher desejante e sexualizada ainda é assunto tabu. A ponto de qualquer livrinho chinfrim que fale a respeito se tornar best seller.
Não é impossível que o vídeo tenha sido publicado pela própria mulher que o encena. Histéricas e exibicionistas existem, afinal. Mas, em geral, elas são pegas de surpresa e são alvo de extremo constrangimento na família, na escola, em seus empregos. Elas serão seguidas pelos olhares e comentários pejorativos de muitos. Seu desejo- ou desejo de atender ao seu parceiro- ao passar do contexto íntimo ao público vai se transformando em vergonha- um sentimento que se tem quando se é flagrado pelos olhos reprovadores dos outros- e então em culpa: o sentimento agora interno de ser ter feito algo errado, de envergonhar a família e os amigos. É preciso um ambiente bastante tolerante e acolhedor para dar suporte a quem passe por isso.
Estes episódios acontecem faz tempo. Todo registro é passível de se tornar público: a literatura do século 18 prodigalizou-se em publicar diários íntimos e trocas de cartas, como no clássico “As ligações perigosas” (1782), de Choderlos de Laclos (transformado em um excelente filme por Stephen Frears, em 1988). E o Marquês de Sade deu a isto uma dimensão filosófica, em “A filosofia na alcova” (1795). Mas se aquela literatura nos informava sobre a existência da distinção entre o mundo público e o privado, o que assistimos hoje é à dissolução daquela distinção.
Quando um vídeo assim aparecia, compreendíamos que algo da esfera privada havia vazado para a pública. Hoje, temos a impressão de que estes vazamentos apenas evidenciam o fato mesmo de que não existe mais privacidade. Não arquivamos mais nossas memórias em casa, em diários escritos ou em nossas mentes. Elas estão em nossos HDs, estão na nuvem, aquele espaço sensacional que nos permite trabalhar e acessar todos os nossos arquivos de qualquer lugar e com qualquer computador. Mas sempre é bom lembrar que a nuvem não tem barreiras e que seus provedores são empresas privadas, com interesses financeiros. Absolutamente nada garante a privacidade de nossos dados. A própria cultura das mídias sociais é movida pela lógica do compartilhamento: este acaba sendo o destino inevitável de todas as informações postadas, a despeito dos mecanismos que supostamente deveriam preservar nossa privacidade. Isto impõe a todos um auto-policiamento mais rigoroso e constante.
Quando tudo é compartilhável, não há mais espaço para a privacidade e, com isto, para a intimidade do desejo dos indivíduos, casais ou grupos. Desejos e opiniões, sobretudo os divergentes dos dominantes e determinados pelo que for politicamente correto em dado contexto vão tendo seus espaços acuados.
O fim dos espaços de fuga talvez tenha alguma implicação no desfecho mais trágico dos últimos acontecimentos. Já não basta mudar de escola ou cidade: como seria possível hoje, a um jovem, deixar a rede e existir desconectado? Submetidos ao ambiente e cultura digitais, talvez a única forma que aquelas garotas tenham encontrado para lidar com a vergonha e culpa tenha sido deletarem-se. Removerem-se como posts não curtidos.