A menina sem qualidade

Por Pedro de Santi
Professor ESPM

Tem circulado na Midia que a MTV vai lançar em maio um programa chamado “A menina sem qualidades”, há inclusive um pequeno vídeo disponível como chamada para o programa. O que despertou um interesse imediato é que o título é o mesmo que o de um livro muito interessante da autora alemã Julie Zeh, de 2004, publicado no Brasil em 2009 pela Editora Record.

Lançado quando a autora tinha surpreendentes 30 anos, o romance teve como título original em alemão Spieltrieb, algo como “impulso de jogar”. O título já é evocativo da narrativa, mas a versão em português faz muito sentido. Ele evoca um dos grandes clássicos da literatura do começo do século XX: O homem sem qualidades, de Robert Musil. O tradutor para o português justifica sua opção num posfácio. Em alemão, o verbo ‘spielen’ remete a jogo, representação, brincadeira (como ‘to play’, em inglês ou ‘jouer’, em francês) mas, em português, o termo ‘jogo’ não traz tantas conotações. Além disso, ele teria lido uma crítica ao livro que o relacionava ao livro de Musil.

Embora não seja tão conhecido do público geral, o livro de Musil é tão importante quanto A montanha mágica, de Thomas Mann; Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust; ou Grande sertão, veredas, de Guimarães Rosa, entre alguns poucos outros grandes livros da primeira metade do século XX. Trata-se de um épico sobre o homem desenraizado do século XX, aquele que restou da crise da Modernidade. Ele já era pós-moderno, décadas antes de o termo ser forjado. Ele foi escrito a partir de 1919, teve uma primeira edição em 1930, uma segunda parte em 1933 e foi sendo retrabalhado até a morte do autor, em 1942. No Brasil, foi lançado pela Nova Fronteira, em 1989. Trata-se de um catatau de oitocentos e cinquenta e tantas páginas. A menina sem qualidades também é robusto, com mais de quinhentas.

O livro de Zeh faz bonito na equiparação com o de Musil. Já no século XXI, o vazio do decantado mundo líquido (expressão de Bauman) da virada do milênio já vai se resolvendo em duas tendências: uma, um neoconservadorismo galopante; outra, desenvolvida no livro, uma grande sensação de que nada pode ser levado a sério e de que tudo é um jogo. Tanto no aspecto lúdico, quanto no aspecto de distanciamento cínico com relação às coisas e pessoas.
Os games têm ganho uma atenção muito grande; eles já não parecem apenas brincadeiras ou formas de entretenimento. Além do investimento em tempo e dinheiro assombroso que produzem na vida dos jovens, muitos têm visto nele uma expressão artística e cultural que o candidata ao papel que o cinema teve no século XX.

A personagem principal desenvolve um jogo pesado envolvendo um professor. Tudo é pobre de afeto e compromisso; o jogo é uma finalidade em si.

Como acontece em tantas obras de arte, uma das forças do livro está em sua contemporaneidade combinada com um tributo à tradição. Há uma linhagem de obras que tematizam professores se colocando em situações constrangedoras e sendo manipulados por mulheres jovens e sedutoras; provavelmente damos motivo. Pense no Anjo azul, filme de 1930 derivado do livro Professor Unrat (1905) de Heinrich Mann ou em Lolita (1955), de Nabocov. Mas se Lolita se perde histericamente no poder de sedução que percebe ter sobre o professor, a personagem de Zeh mantem-se em distanciamento afetivo absoluto. Não se trata de uma histérica, mas de algo distinto e mais dissociado. Algo muito insinuante sobre a subjetividade contemporânea se apresenta aqui.

No clipe que já pode ser assistido pela internet, tudo é vago e escuro. Há algo de misterioso e promissor. Aguardemos com a torcida de que a série faça frente ao romance.

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