Por Cesar Veronese, Professor do CPV Vestibulares
Realizou-se na semana passada o 17o. Festival de Cinema Judaico de São Paulo. Entre cinebiografias, ficções e filmes voltados para a análise dos complexos conflitos árabe-israelenses, destacaram-se vários documentários sobre a memória do Holocausto.
A evocação da Guerra, as perseguições aos judeus, os guetos, os campos de concentração, as câmaras de gás, a indústria nazista, a barbárie capaz de superar qualquer ficção. Essas realidades, todos as conhecemos e nenhuma tese parece ser suficiente para explicá-las a partir de critérios de racionalidade. Contrariamente, a bestialidade, o instinto de morte e o mal insondável talvez sejam elementos que se manifestam com mais força do que gostaríamos de reconhecer em nossos corações e mentes.
Ao longo das quase sete décadas após o término da Segunda Guerra, a literatura, os relatos e depoimentos, bem como a indústria cinematográfica, produziram incontáveis livros e filmes sobre o Holocausto. Talvez, no fundo, tenham até contribuído – falando-se com Hannah Arendt – para banalizar a memória da tragédia, pois muitas dessas narrativas serviram-se dos fatos apenas para potencializar a força dramática de um enredo ou roteiro.
É nesse ponto que se torna necessária uma distinção. Como em qualquer época e diante de qualquer tragédia, há os autores que canibalizam o substrato dos fatos para diluí-los em obras pasteurizadas e melodramáticas, e há as obras capazes de captar a verdade humana dos acontecimentos e expressá-la com a pulsação necessária para acender a consciência dos que não presenciaram os fatos.
Nesta última categoria inscrevem-se vários documentários deste Festival, como NASCIDO EM UM CAMPO DE CONCENTRAÇÃO (GEBOREN IM KZ), de Eva Gruberová e Martina Gawatz. O filme conta a história das duas últimas judias sobreviventes de um grupo de sete mulheres que deram à luz no campo de Kaufering, anexo ao campo de Dachau. Com a aproximação dos Aliados, elas e seus bebês foram transferidos, junto com milhares de prisioneiros, para outro campo. No deslocamento, o exército americano bombardeou por engano o comboio em que eles viajavam. Os nazistas abriram fogo cerrado contra os fugitivos, mas as sete mulheres e seus filhos recém nascidos conseguiram escapar.
Outro dos filmes mais interessantes do Festival foi AS CRIANÇAS DE HITLER (HITLER’S CHILDREN), de Charnoch Ze’evi. O diretor ouve os depoimentos de filhos e netos de alguns dos maiores carrascos da máquina de Hitler, como Himmler, Goering e Hoess. Alguns preferiram o isolamento, como Betina Goering, sobrinha-neta de Goering, recolhida num povoado sem água encanada e sem energia elétrica, nos confins do Novo México. Outros, como Niklas Frank, filho de Hans Frank, governador-geral da Polônia ocupada, preferem escrever livros e viajar pelo mundo levando sua solidariedade aos descendentes das vítimas, e, com a coragem de quebrar o tabu do amor de filho, admitir que, considerando as ações do pai, gostaria de poder assassiná-lo.
São questões delicadíssimas que levantam outras: os traumas pessoais, os sentimentos das novas gerações sobre o Holocausto, os interesses diplomáticos escusos sempre envolvidos nos grandes conflitos. Mas a questão principal é, sem dúvida, a de resgatar e atualizar a memória da memória. Nenhum livro, filme ou relato sobre o Holocausto jamais será definitivo. É preciso sempre revolver essas cinzas para impedir o surgimento de outros holocaustos. Agora mesmo, enquanto o presidente do Irã afirma aos quatro ventos que o Holocausto não existiu e os skinheads levantam seu discurso de ódio gratuito.
O Festival de Cinema Judaico acabou, mas está em cartaz na cidade o ótimo HANNA ARENDT, de Margarethe von Trotta.