Pedro de Santi
“Tudo, naqueles anos, era diferente, até o sabor dos sonhos. (Talvez eu nunca tenha sido inteiramente feliz, mas se sabe que a desventura requer paraísos perdidos).” Do conto Deutsches Requiem, do livro ‘O Aleph”, de Jorge Luis Borges.
Lembrei desta passagem do conto de Borges ao assistir o filme de Wes Anderson.
Tudo nele é suavidade. Há humor brando, não de causar gargalhadas e até um humor negro mas leve, que não chega a causar repúdio.
O filme todo tem um clima de sonho e nostalgia (literalmente, a dor pelo que foi perdido).
O filme começa com 13 minutos nos quais somos lançados num recuo em algumas etapas; a cada corte, narrador e protagonista mudam. Partimos de uma menina com um livro nos braços reverenciando a estátua de um autor já morto; voltamos até uma fala deste mesmo autor sobre seu ofício e a fonte de suas narrativas. Novo recuo e encontramos o autor jovem, conhecendo o Grande Budapeste e seu dono, que introduz o último salto, este, uma narrativa sobre o tempo mítico das origens. A personagem, chamada Zero, nos apresenta o concierge original, Gustave. Apersonagem Gustave foi escrita especificamente para Ralph Fiennes e sua elegânca britânica característica. Foi daquele tempo da origem que Zero emergiu como sujeito: de garoto de recados do Hotel a seu dono, de criança a Homem que amou.
Do elenco sensacional e estelar do filme, chamo a atenção para a aparição de um ator que reforçou em muito minha experiência de nostalgia: F. Murrray Abraham representa Zero, já idoso. Para um cinéfilo, a presença dele evoca memórias dos anos 80, sobretudo o filme ‘Amadeus’ (1984), de Milos Forman, onde ele interpretou o papel de sua vida: Antonio Salieri, o narrador do filme e antagonista de Mozart. Depois de um momento de pico na carreira (que incluiu ‘Scarface’ (1983) de Brian De Palma; ‘O nome da Rosa’, (1986) de Jean-Jacques Annaud; ou ‘Poderosa Afrodite’ (1995), de Woody Allen) ele não voltou à evidência. Vê-lo no filme, velho narrador como Salieri, produziu em mim um impacto de memória alinhado ao espírito do filme.
Voltando à narrativa, depois do recuo ao tempo da origem, somos lançados numa peripécia que evoca o fato de Gustave ser um modelo absoluto de concierge, tão prestativo que se torna o amante de diversas hóspedes de idade. Daí um crime, uma herança, uma perseguição no melhor estilo do cinema mudo dos anos 20. Como em toda reconstrução de memória, ainda que em lembranças cristalinas, o passado aparece alegorizado e idealizado. A direção e fotografia do filme produzem um efeito onírico.
E em meio este Romance de formação de Zero, ele encontra o amor de Ágata. É um amor completo, de Z a A, diz Zero: completo e regressivo no tempo.
Passadas décadas, Zero se tornou milionário, assistiu às transformações e guerras no centro da Europa e, ante a decadência inevitável do Hotel, passou a empenhar sua fortuna na prorrogação de sua existência. Missão fadada ao fracasso próximo.
Ante o enigma deste empenho, o autor lhe pergunta se fazia isto para preservar a memória de Gustave. Mas não. Zero deixa claro que o mundo que Gustave representava tão bem já havia morrido antes mesmo do tempo de Gustave. E que o que ele representava estava vivo, na medida em que eles compartilhavam a mesma vocação. Em outras palavras, o luto estava feito neste campo: despedida e incorporação do objeto perdido.
Ele mantinha o Grande Hotel Budapeste por Ágata, com quem ele pudera viver feliz apenas brevemente, antes dela ser levada por uma epidemia.
Em sua formação pessoal, enquanto mal começava a desfrutar do amor, ele lhe foi privado. É assim que se faz uma melancolia. Um luto que não pode acabar, porque perdemos aquilo que amamos antes de ter tido o suficiente dele.
Na companhia do objeto perdido, tendo entorno o Grande Budapeste e dormindo no mesmo pequeno quarto sem janelas que habitara quando jovem, ele se sentia bem, com o tempo parado e preservado. No final do filme, os saltos no tempo são rapidamente refeitos de volta e somos entregues, para o bem e para o mal, as desventuras de 2015.