A intolerância de sempre e a intolerância de hoje [Parte 2]

Pedro de Santi

A tolerância mútua depende da mediação social

Retomo aqui a discussão da semana passada, na qual procuro definir em termos básicos as origens da tolerância, em relação à própria constituição do eu. Nesta parte, procuro estender a questão para uma dinâmica de relação grupal. Sempre trabalho desde uma perspectiva psicanalítica.

Ao longo da vida, a dinâmica inicial da formação da mente com a cisão eu/bom, outro/mau se replica na formação dos grupos familiares e de pertinência.

A convivência em grupos onde encontramos acolhimento, proteção ou amizade gera atritos normais. É difícil lidar com a ambivalência afetiva: amamos e odiamos ao mesmo tempo as mesmas pessoas. E o mecanismo para preservar aqueles que amamos de nosso ódio é, uma vez mais, a projeção da agressividade em outros grupos. Estar em grupo e falar mal de outros grupos é um forte componente de coesão. Criamos intimidade, cumplicidade, afirmamo-nos como superiores e conseguimos “queimar” nossa hostilidade interna voltando-a para fora.

Assim, cada entidade identitária (pessoa, família, tribo, grupo de trabalho, esporte, religioso, etc) afirma-se ante e anti um outro grupo, depósito projetivo de todos os males. Nossas imperfeições e insuficiências, a frustração com o mundo que não se dobra aos nossos desejos; tudo é atribuído à ação incompetente ou malévola do grupo adversário. Damos forma antropomórfica ao vazio e ao infortúnio.

Freud forjou o expressão ‘narcisismo das pequenas diferenças’ para descrever como elegemos nossos inimigos privilegiados. Eles são escolhidos por identificação: alguém de nosso tamanho e parecidíssimo conosco (duro de engolir, não?). Não nós afirmamos ante alguém muito maior ou menor no que nós mesmos, mas ante semelhantes. Atacamos no outro o que não suportamos em nós, como na velha e boa piada sobre o homofóbico ser alguém “no armário”.

Mas esta é a dinâmica de quem conseguiu ser incluído no grupo que almejava. O que ocorre com quem não conseguiu? A experiência da exclusão é arrasadora e gera um sentimento de diminuição, não merecimento, desamor. Costuma se seguir a isto o isolamento ou o encontro com outras pessoas na mesma condição, e elas formam um novo grupo, o grupo dos excluídos. Um grupo formado assim por pessoas cheias de ressentimento por terem sofrido exclusão costuma ser ainda mais coeso. Sentindo-se potentes em grupo, eles costumam reproduzir a violência que sofreram e serem especialmente intolerantes.

Voltando à convivência em grupo, ela presume uma intermediação entre os indivíduos que o compõe. Esta intermediação é dada pelo compartilhamento por parte de seus membros da idealização de um ideal. Pode ser uma idéia ou figura de liderança. Mas é através de uma intermediação simbólica que cada indivíduo ultrapassa sua luta primária por interesse e passa a se sentir fortalecido pela pertinência a um grupo. Cada um projeta na figura de referência os ideais aos quais renunciou no processo de amadurecimento. Meu líder encarna meu eu ideal: onipotente e perfeito como um dia se acreditou ser, até a realidade se impor e criar uma noção de nossos alcances e limites.

Os membros do grupo se irmanam justamente por compartilharem a idealização ao mesmo objeto.

Este é o caminho do convívio social e das negociações, em medida motivadas pelo medo do abandono e da solidão. São os pactos sociais descritos por Freud e Hobbes, por exemplo. Para ambos, aliás, a primeira motivação para o convívio social é o medo de morrer. A consciência de nossos limites e o destino inevitavelmente mortal da pura luta por nos impormos em busca de poder e prazer.

Para quem conheça a psicanálise, é aqui que entra o complexo de Édipo e a função paterna. A criação do laço simbólico é correlato ao que nos referimos no texto anterior como fim da idealização de si e do outro, com o nascimento do vazio e condição de relação real com o outro.

É por este caminho que nos descolamos dos processos primários de busca por prazer (o Estado de natureza, de Hobbes) e entramos no caminho da experiência política. Renúncia ao prazer imediato, inclusão no laço social, garantias básicas de proteção por parte do grupo, caminhos disponíveis para prazeres possíveis. O processo é frustrante para quem se acreditava onipotente; além disso, deixa restos reprimidos e paga-se o preço por eles sob a forma de neurose. Mas é o que temos para hoje.

Naturalmente, para que este processo se consuma, é necessário que a posição simbólica se instaure com autoridade e justiça: todos devem ser iguais perante a lei para que o pacto funcione para indivíduos que, a princípio, querem tudo para si. A autoridade provém da condição de que ela se mostre justa e impessoal e cada um possa confiar nela. Quando a autoridade falha, quem ocupa o lugar de poder muitas vezes apela para o autoritarismo, ou seja, a forca, A autoridade se ancora no simbólico, o autoritarismo no imaginário e no real.

Assim, o acesso à dimensão simbólica proporciona um distanciamento relativo da experiência imediata, o que produz um efeito ambivalente: de um lado “perdemos o paraíso” da crença em certezas e onipotência; de outro, ficamos a salvo da onipresença persecutória de um outro malévolo. Sofremos com a falta, mas nela desfrutamos do privilégio da solidão.

No entanto, caso haja no exercício da força característico da função paterna a suspeita de que ela não esteja agindo de acordo com o que é justo e válido para todos, aquela força será vivida como pura violência e exercício de gozo sádico. Aquele que a sofre não irá renunciar ao seu prazer imediato em função de um pacto simbólico, mas estará sob uma situação de terror. A figura paterna sem autoridade simbólica e agindo de acordo seu interesse não irá operar uma castração simbólica, mas sim uma mutilação real; não exercerá a função paterna, mas a de mãe má persecutória (ver texto anterior).

Penso, como exemplo, que seja com esta tensão que acompanhamos a Operação Lava Jato e o juiz Moro: do que se trata, afinal? De uma tentativa inédita de rever a cultura de corrupção arraigada do país ou de uma perseguição arbitrária a um grupo específico? Trata-de de arbítrio jurídico ou de uma arbitrariedade policial; autoridade ou autoritarismo? Estamos procurando a construção de um novo pacto social ou nos vingando do partido dos trabalhadores que ousou chegar ao poder? Se for o primeiro caso, aqueles que são acusados e não veem autoridade no processo procurarão o desqualificar e atacar, procurando o fazer com que pareça o segundo caso (perseguição, como na expressão recorrente: “vazamento seletivo de informações do processo”). Penso que haja uma séria crise de autoridade simbólica; inclusive porque é um negócio seguro buscar defeitos e falhas morais nos outros. Como instaurar um termo simbólico compartilhado?

Quando, nos fim dos anos 70, o antropólogo norte-americano Christopher Lash forjou a expressão ‘cultura do narcisismo’, mita gente imaginou que se tratasse de uma referência à nossa vaidade e individualismo. Mas para a psicanálise isto implica em muito mais do que isto, justamente numa falha do processo edípico (que remete à socialização) e na permanência de um modo mais primitivo de experiência.

Temos uma roda que gira em falso. Ante a falta de confiança numa instância simbólica qualquer, não confiamos e atacamos qualquer uma que procure se afirmar. Ela será vivida como alguém que quer cortar meu prazer, suspeitar de minhas referências, ferir meu narcisismo; mas só o meu, não o de meus adversários.

No campo político, os grupos partidários majoritários hoje no Brasil (que tanto se comprazem em apontar a corrupção um do outro e são incapazes de uma auto-crítica, atribuindo qualquer acusação a eles há uma “motivação política”), há trinta anos viviam sob o pacto da Nova República, contra inimigos em comum. Paradoxalmente, com a vitória daquela causa, passaram a se degladiar intolerantemente pelo poder.

Tudo leva a crer que só ante um novo medo ou ideal em comum e reconstituição de um pacto simbólico poderíamos sair da paralisia em que nos encontramos. Isto independente dos atores do pacto social anterior que, aparentemente, perderam em boa medida a representatividade popular.

A tolerância mútua também é constituída pela mediação simbólica social.

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