A histeria e Charcot no filme “Augustine”

Por Pedro de Santi

Não é a alma imortal, não é o cérebro. É a mente. O campo da subjetividade onde está nossa consciência e nosso inconsciente, nossas sensações e memórias, nossos conflitos, nossa identidade e seus avessos. Nossos desejos e a dinâmica de nossas relações pessoais.

O século 19 conhecia a alma e o cérebro, mas a mente foi concebida plenamente no limiar do século 20, num campo chamado Ciências Humanas. Ela nasce e morre com a pessoa, mas sua dinâmica é irredutível ao cérebro.

Mas Jean-Martin Charcot (1825-1893) não sabia disto. Não poderia saber. É no cérebro que ele procura a causa da histeria, o “mal do útero” estudado desde Hipócrates. Quem tem um consistente saber tácito a respeito é Augustine, a mais famosa entre suas pacientes. A escolha pelo nome do filme deixa claro quem realmente protagoniza a história.

Como não era possível identificar uma lesão que justificasse os sintomas dos pacientes e muitos deles fossem impossíveis anatomicamente, a maior parte dos médicos preferia desqualificar a doença como “coisa de mulher”. Em seu trabalho com as histéricas no Hospital Geral de La Salpêtrière em Paris, Charcot tratava de reivindicar o estatuto de doença a este mal que já tinha uma conotação pejorativa, então. Sua tentativa era dar consistência clínica à doença, ao destacar sua regularidade e fases. Em seu esforço neste sentido, deixou um amplo e impressionante arquivo fotográfico de pacientes e das fases do ataque histérico que discriminou (Ver “Invention de l’hysterie. Charcot et l’iconographie de La Salpêtrière”, de Georges Didi-Huberman. Paris: Éditions Macula, 1982). Charcot usava a hipnose, como era comum na medicina do século 19. Ele a usava em suas aulas para remover e instalar sintomas por sugestão. Mas ele já sabia que a hipnose não possui eficácia terapêutica: o efeito da sugestão hipnótica é momentâneo.

Augustine existiu e foi quem mais deixou registros de imagem. Ela de fato posava, no sentido contemporâneo. Mas não posou numa mídia social, em oferta ao olhar de centenas de amigos: ela posou para Charcot. Suas caras e bocas, suas severas contraturas musculares (que permitiam que ela fosse suspensa sobre o encosto de duas cadeiras apoiada apenas pela nuca e os tornozelos), suas convulsões altamente erotizadas atendem à demanda de seu médico: e a ele então ela demandava sua cura.

O principal fantasma do médico francês era a acusação de que os ataques de suas pacientes fossem forjados, frutos de sugestão. Enquanto procurava investigar o corpo e o cérebro com toda a objetividade, escapou a Charcot que é exatamente na sugestão que se joga o jogo intersubjetivo da histeria: a sedução do saber médico e dos corpos convulsionários das pacientes, a encenação, a oferta, o desafio e a demanda, a desautorização do outro uma vez que a sedução é bem sucedida.

O filme “Augustine” (2012), dirigido e roteirizado por Alice Winocour romanceia a relação entre Charcot e sua paciente, mas mostra com clareza o jogo e o sofrimento das mulheres histéricas no século 19. Se elas não tinham direito a voz, elas podiam adoecer e, com isto, passar a controlar aqueles a seu redor.

De início, Charcot é a autoridade médica de quem Augustine espera a cura. Ela se torna seu objeto de estudo e está seduzida por seu possível salvador. Aí está toda a cena histérica, para além dos sintomas físicos. Com o passar do tempo e o avanço da relação, vemos o desejo ser despertado em Charcot, que luta contra ele e procura ser cada vez mais impessoal, quase cruel. Ele procura ignorar seu desejo e não tem empatia alguma pelo sofrimento de sua paciente.

O filme mostra transformações impressionantes nos ataques convulsivos de Augustine. O primeiro, antes da internação, parece epiléptico. Já internada, numa espera interminável por sua vez para ser atendida por Charcot, o ataque é uma forma de chamar a atenção sobre si e romper a ordem. Charcot estava justamente à procura de uma paciente histérica paradigmática para “usar” em seus experimentos e apresentações clínicas. No terceiro, já numa sala de aula e sob hipnose, o ataque já é definitivamente um espetáculo e ganha uma forte conotação erótica, para deleite da assistência. O quarto é uma reversão completa da situação: Augustine se vê curada de todos os seus sintomas imediatamente antes da mais importante apresentação clínica de Charcot para a sociedade médica. A cura de Augustine a tornaria inútil para ele e o constrangeria no momento mais importante de sua carreira. Pois Augustine percebe e oferece ao público a representação de um ataque encenado e provocativo.  Charcot assiste ao sucesso da aula ante um ataque que só ele e ela sabem ter sido falso. Sua vitória é desautorizada pela consciência de estar de fato comprovando as acusações de manipulação que sofria. Ele acaba por se ver fraco, enredado na cena, tendo cedido a Augustine o que ela desejava e se vendo abandonado  em seguida por ela. De objeto vitimizado, ela passa a ter papel de sujeito da situação. É perturbador.

Percebemos então que a histeria é, muito mais que um sofrimento no corpo, um modo de relação intersubjetiva. Os sintomas são ofertas e demandas ao outro.

O filme se passa em 1885. No ano seguinte, um jovem médico neurologista vindo de Viena passou um semestre letivo estudando com Charcot. Em gratidão por tudo que aprendeu, Sigmund Freud manteve por toda a vida sobre o divã de seu consultório um quadro que representava Charcot numa aula, trazendo uma paciente histérica hipnotizada em seus braços.

Freud ouviu o que Charcot apenas vira. Ele abandonou a prática médica e passou a se dedicar a entender e atender à histeria. Para isto, criou uma teoria da mente voltada às relações humanas, ao sentido dos sintomas e aos desejos a eles subjacentes.  Assim, quase 15 anos depois nasceu a psicanálise, uma das tais Ciências Humanas do século 20. Elas não tem a exatidão das ciências positivistas, mas estão no cerne da experiência humana.

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