A Garota Dinamarquesa (Dir.: Tom Hooper, EUA, Reino Unido, Alemanha, 2015)

Eduardo Benzatti

“A garota dinamarquesa” é o tipo de filme que se você for deixando para ver depois, sai de cartaz e você só verá (depois, depois) na telinha. Pelo menos foi (quase) assim comigo: deixei para vê-lo somente agora. De onde vem essa resistência a determinados filmes? Uma resposta é: quando você lê algo assim sobre um filme: “Trata-se da cinebiografia de Lili Elbe (Eddie Redmayne), que nasceu Einar Mogens Wegener e foi a primeira pessoa a se submeter a uma cirurgia de mudança de gênero”. Fica a sensação de já tê-lo visto. Imaginamos o começo e o fim. Mas, e o meio? Como essa história aconteceu. Aí “A garota dinamarquesa” nos surpreende. E o filme pode ser resumido numa única palavra: “delicadeza”.

As interpretações – em especial do protagonista (ou da protagonista?), Eddie Redmayne – são delicadas, a fotografia (pictórica) é delicada, a trilha é delicada, os diálogos são delicados, muitas cenas são delicadas. Mas, vou centrar minhas reflexões sobre o filme num outro aspecto, digamos, “mais psicanalítico”.

Primeiro: é incrível que a psicanálise só apareça (de forma direta) no filme em alguns segundos e da maneira mais caricatural possível: depois de frequentar vários médicos e psiquiatras, nosso herói/heroína também visita um psicanalista em Paris e esse (será que eu vi bem que além de sentado à beira do divã o mesmo escrevia suas observações num “caderninho”?!!) diz a ele/ela que… “touché”: “Você é homossexual”! Desculpem-me, mas na segunda metade do século passado, a psicanálise – cuja coluna mestra é exatamente a sexualidade – estava muito mais adiantada do que isso.

Bom, mas então onde ela (a psicanálise) aparece (de forma indireta, porém mais consistente)? No filme todo. As cenas iniciais são as paisagens da cidade natal de Einar/Lili, ou seja, suas visões de infância – esse “tempo mítico”, cujos acontecimentos irão definir quem seremos e o que seremos. Essas paisagens acompanharão o personagem a vida toda.

Ou será por acaso que ele foi um pintor de paisagens que tentou fixar nos quadros as memórias de infância? As mesmas paisagens que ele passava horas vendo com seu melhor amigo (o primeiro amor, depois da mãe; o primeiro beijo, depois do da mãe) e imaginando como seria o futuro (de ambos). No meio do filme há a sequência-chave em que o personagem visita uma espécie de bordel (Paris, Montmartre, década de vinte do século passado: nada mais apropriado) com suas “cabines privativas”. Lá o personagem não só observa a prostituta na sua performance erótica, mas ele a imita em cada gesto. (Como a criança – bissexual como qualquer criança – que olha pela fresta da porta e ao observar sua mãe imita seus trejeitos numa tentativa de com ela se identificar). Nessa hora, na cabine, nosso personagem, finalmente, goza. (A sequência já seria emblemática no filme por colocar feminino e feminino juntos, lado a lado – de forma fantasmagórica – na (quase) justaposição das duas faces do vidro que os separam, mas também que os fundem). E, finalmente, a sequência final, o relato do sonho (realização do desejo e reminiscências da infância) em que a personagem embalada nos braços da mãe que a olha – eis o “investimento” do olhar amoroso da mãe sobre nós que irá nos constituir psiquicamente; eis a construção da nossa imagem pela aprovação do outro simbólico (Lacan) que, no filme, depois será tantas vezes reforçada pela esposa/mãe, aquela que primeiro o desenha como ele realmente o é – e, simplesmente, diz: “Lili”.

Assim se constrói um imaginário e uma imagem feminina de si mesmo(a), apesar de um corpo de “homem” (o “gênero” – seja lá o que isso ainda signifique hoje – está num local muito mais profundo de cada um de nós e não nas genitálias). Mais psicanálise que isso, só na Clínica.

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