A Filosofia como modo de vida – Ciências Humanas e aprendizado como reflexão

Pedro de Santi

A expressão que nomeia o texto é do filósofo francês Pierre Hadot (1922-2010) e procura resgatar um dos sentidos mais primitivos do reflexão filosófica, que foi relativamente abandonado na Modernidade. Uma concepção em que ela seja um exercício reflexivo, ético e implicado com a própria vida e não como conjunto enciclopédico de sistemas de pensamento. Considerei pertinente evocar Hadot por dois motivos. Um deles, é por ver a necessidade de resgate do valor das Ciências Humanas; o outro, é pelas discussões que temos feito sobre o processo de ensino e aprendizagem.

As Ciências Humanas têm sua base na tradição filosófica, mas, bem ao gosto de nossa época, elas são convocadas a serem instrumentalizadas, “aplicadas à”, proporcionando técnicas de intervenção sobre seus objetos de estudo. O risco aqui é que elas abandonem sua dimensão original de reflexão e crítica da filosofia e sejam reduzidas a fornecedoras de tecnologia. A psicologia é convocada como psicologia do consumidor ou dos recursos humanos, ou reduzida a técnicas de auto-ajuda ou “tomada de decisão”; a antropologia é convocada como pesquisa de mercado etnográfica. A filosofia não é convocada. Se ela não pode oferecer algo instrumentalizável imediatamente, ela é desprezada como campo de opiniões alheias à realidade (do Mercado).

Não há nada de errado naquela demanda, desde que as Ciências Humanas não percam nela e se vejam reduzidas à produção de técnicas. Quando isto acontece, é porque um dos sistemas filosóficos, o positivismo, conquistou uma posição hegemônica a ponto de se confundir com a própria realidade. Neste jogo, as Ciências Humanas não tem como se dar bem; no terreno específico do conhecimento positivista que se esquece de si, elas só podem parecer vagas e inúteis. Elas podem até perder seu título de ‘ciência’ e figurar apenas no termo feio, vazio e adaptado do inglês: ‘Humanidades’.

O outro motivo para evocar o modo de pensar a filosofia antiga é nossa reflexão sobre ensino e aprendizagem, numa modalidade na qual não se entenda que o professor é o detentor de conhecimento, que o transmite em sala de aula a um estudante passivo. O que se chama hoje de metodologia ativa de ensino e aprendizagem é, afinal, o resgate daquele princípio original de toda a filosofia. Naturalmente, nenhum ensino efetivo fia-se numa concepção tão passiva do processo, mas hoje torna-se mais importante trabalhar a aprendizagem como processo, no qual o conhecimento seja construído com verdadeiro significado para o estudante; e resulte transformador.

A forma antiga de se lidar com o pensamento filosófico ou com o pensamento, em geral, era a de que o pensamento fosse vivo, ativo, com a implicação pessoal do pensador e em coerência como o modo como conduz sua vida.

Hadot (“O que é a filosofia antiga”. São Paulo: Edições Loyola, 1999) mostra como foi no início da era cristã que a filosofia passou progressivamente a ser tomada como estudo do discurso filosófico de “autoridades”, tal como predominantemente é praticada hoje. Esta distinção é atribuída, em primeiro lugar, ao fato de que, no início do cristianismo, o padrão de modo de vida naturalmente não podia ser o grego, mas sim o derivado da Bíblia. Os gregos passaram a ser tomados apenas como recursos teóricos. Posteriormente, no século XIII, com a criação das primeiras universidades na Europa surgiu a figura do “professor universitário”, responsável pela interpretação dos textos clássicos; já não se discutia as coisas, mas as teses.

A Modernidade teria momentaneamente rompido com esta tradição, recusando a autoridade dos textos canônicos e colocando-se o projeto de refundar os procedimentos de construção da verdade. Após alguns séculos de relativo otimismo com relação às possibilidades de fundamentar-se o conhecimento da verdade, teria se seguido uma diminuição de tal crença e, do século XIX para cá, a filosofia teria voltado a ser exegese.

Montaigne e Descartes (autores de “Os ensaios” e “Meditações filosóficas”, respectivamente) seriam dois dos filósofos do início da Modernidade que teriam rompido com a tradição e procurado refundar o pensamento filosófico como reflexão constante e viva sobre si. Já no século XVI, Montaigne nos alertava que os filósofos não faziam mais do que se “entreglosar”.

Sócrates é a grande referência de Hadot como aquele que busca a sabedoria em todos os aspectos de sua vida. Este seria o modelo do filósofo: afasta-se relativamente das opiniões comuns e procura atingir um outro patamar, sem nunca atingi-lo, no entanto. Assim, a filosofia era originalmente compreendida como um modo de vida, um exercício de pensamento e da vontade, compreendendo a totalidade da vida da pessoa, cuja meta era atingir um estado praticamente inacessível à humanidade: a sabedoria.

Ao mesmo tempo, o mesmo Sócrates era descrito como um homem comum, quase um “boa vida”. O grande instrumento da reflexão de Sócrates é, como é sabido, a ironia. Ela se revela como uma espécie de humor que se recusa a levar por demais a sério qualquer assunto humano (sobretudo a si-mesmo), percebendo o quanto há de inseguro em tudo relativo a ele. A ironia socrática pressupõe um desdobramento de si: aparentemente ela parte de uma auto-depreciação, ela antecipa os argumentos do adversário fazendo-se parecer inferior; mas então, de dentro da posição do outro, evidencia nele a mesma fraqueza que reconhecera em si. É esta consciência de si que está expressa no “tudo o que sei é que nada sei”.

Montaigne, por exemplo, aprendeu dos antigos o método da reflexão contínua e racional, que recusa qualquer tradição ou autoridade. Daí o título da obra de sua vida, que inventou um estilo: “Os ensaios”.

Mas o ensaio nos mantêm no campo desconfortável da incerteza e do inacabamento (sempre em versões “Beta”), característico de tudo o que se refere à vida humana real. Não se pode oferecer neste campo tecnologia do comportamento ou ciência exata.

Sabemos que aproximar o processo de ensino e aprendizado num paradigma como este impõe desafios práticos enormes pela quantidade de alunos com que lidamos, a singularidade de cada sujeito envolvido, pelas dificuldades em avaliar e garantir a aquisição de conhecimento ou competências. Como conciliar um processo em aberto e singular com uma meta definida por um “perfil do egresso”, moldado pela demanda do Mercado?

Deste breve caminho sobre a filosofia antiga, talvez pudéssemos propor uma distinção entre os termos ‘informação’, ‘conhecimento’ e ‘sabedoria’.

Informação seria aquilo que alimenta a internet e a Wikipedia, aquilo que todos hoje tem acessível a qualquer instante e em qualquer lugar. Aquilo que um aluno pode mesmo deter em maior quantidade que seus professores, no smartphone em suas mãos durante uma aula.

Conhecimento poderia ser entendido como o campo acumulativo no qual as informações podem ser instrumentalizadas, como técnicas visando determinado controle sobre os objetos de estudo.

Finalmente, a sabedoria é o lugar onde ensino e aprendizagem podem ser mais ativos. Lá se encontram o campo das articulações entre informações mais abrangentes e contextualizadas que o conhecimento e, sobretudo, mais implicadas eticamente com a vida. Sabedoria é conhecimento consolidado e incorporado: trata-se de amadurecimento pessoal.

Proponho que esta possa ser a direção das Ciências Humanas, sem desprezar a produção de conhecimento e a disseminação de informação.

A Universidade definitivamente não centraliza mais informações, provavelmente não o faz também no que diz respeito ao conhecimento. Neste sentido, talvez a reflexão acima também se aplique aqui: se ela não retomar o lugar de proporcionar experiência de aprendizado num sentido amplo, capaz de construir, concentrar e transmitir sabedoria transformadora, talvez ela realmente se torne (tenha se tornado) supérflua.

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