(Continuamos com diversas participações de professores da ESPM sobre o lançamento do livro “Eu e o outro na cidade” de Pedro de Santi)
Christiane Coutheux Trindade
A igreja St John the Baptist, localizada em Burford na Inglaterra é datada de 1175. Ao longo de mais de oito séculos de história, a construção foi cenário de contínuas intervenções e ampliações, ainda que depois de 1500 sua forma tenha se mantido bastante inalterada. Como uma igreja tipicamente medieval, desconhece-se os agentes envolvidos em sua construção: de quem é o projeto original?; quem executou a obra?; quem financiou?; quem a expandiu?. Como nos assegura Julían Marías, as igrejas medievais estavam ocupadas em glorificar Deus e a Igreja; eram obras da comunidade.
Se viajarmos até Barcelona e mirarmos a Sagrada Família, também veremos que está em contínua construção. A primeira pedra foi colocada em 1882, a partir do desenho do arquiteto Francisco de Paula del Villar y Lozano. Todavia, no ano seguinte, por divergências com os promotores da obra, Lozano se desliga do projeto e Antoni Gaudí assume a direção. O prédio sofreu danos durante o período da Guerra Civil Espanhola, mas desde 1883 a construção do templo não parou. Nesses quase 150 anos de história, a Sagrada Família continua a seguir à risca o projeto de Gaudí, embora muito do material do artista tenha sido destruído durante a guerra.
Por que, em uma comunicação que se propõe a pensar o homem comum na cidade, estamos a falar de construções de Igreja? Compará-las é evidenciar uma das profundas diferenças trazidas a partir da Modernidade: a precisão da autoria. Gradualmente, a história ocidental testemunhou o nascimento do indivíduo, antes oculto nas festas comunitárias medievais. Ao nos deter brevemente sobre a igreja de Burford e de Barcelona, fica evidenciada essa diferença. É tipicamente uma preocupação moderna datar, nomear, controlar, e, assim, destacar a presença do indivíduo. Mãos anônimas projetaram por séculos a igreja inglesa. Ela permanece, sólida pelo tempo, ainda que as centenas de milhares de personagens que a vivenciaram há muito tenham perecido. A autoria de Gaudí parece estar protegida de um tal olvido: Gaudí é festejado, simboliza toda a cidade. Assim, desde a modernidade, nos acostumamos a valorizar e destacar o indivíduo.
Estranhamente, a mesma Modernidade forjou a vida nas grandes cidades e lá o indivíduo se viu perdido por aglomeração. O crescimento da vida urbana veio acompanhado de tensões entre indivíduo e massa social. Escondidos em automóveis, telas e passos apressados, as pessoas vivem diariamente a contradição de, mesmo juntas, se isolarem. Testemunhamos o desenraizamento das relações ao mesmo tempo em que alargamos as possibilidades de contato.
A cidade parece se ressentir do anonimato de seus habitantes. Ao mesmo tempo em que oferece refúgio nesse ocultamento da vastidão, continua a cultivar o fetiche da celebridade, da genialidade, do único. Ninguém quer ser mais um; ninguém quer ser comum. Mas é justamente no território comum que nos encontramos cotidianamente, como iguais, ainda que diferentes. Nesse sentido, é o ser comum que nos torna justamente os habitantes da democracia. Ela é pensada não para o especial ou o expert, mas para que o povo conduza suas decisões e partilhe suas experiências.
Enquanto nos seduzimos pela ideia do extraordinário, olvidamos justamente de que somos comuns e lutamos historicamente para o sermos. Esquecemos que o comum assegura a possibilidade de nos comunicar, de com o outro coabitar as cidades. É o comum também a morada do singular quando tomamos a diminuta existência humana no tempo do mundo.