A barbárie e a escrita

Cesar Veronese, Professor do CPV Vestibulares

Há algumas semanas foram outorgados os prêmios Nobel da Paz e de Literatura. O primeiro foi dividido entre Malala Yousafzai e Kailash Satyartir. O de Literatura ficou com o ficcionista francês Patrick Modiano.

Malala, a mais jovem agraciada com o Nobel, é uma adolescente paquistanesa de 17 anos que há dois anos sofreu uma tentativa de assassinato dos talibãs por sua luta a favor da educação das meninas. Ao receber o prêmio, ela o dedicou a “todas as criaturas sem voz”. Satyatir foi contemplado pelo seu empenho em campanhas contra a exploração do trabalho infantil, praticada por pequenas, médias e grandes empresas em todos os cantos do planeta.

Entre os motivos arrolados pela Academia Sueca para justificar o Nobel a Modiano, alegou-se “a arte da memória com a qual evoca os destinos humanos mais incompreensíveis e descortina a ocupação nazista”. Filho de um imigrante grego que atuou como colaboracionista durante a permanência do exército nazista na França, sua obra começou a ser elaborada ainda na juventude, a partir desse duplo trauma, da atitude do pai e da memória de seu país.

Esse trabalho da memória, que realiza um luto coletivo pelas vítimas do Holocausto, é um tema recorrente em vários grandes romancistas da segunda metade do XX, como o alemão Gunter Grass (também Nobel), que na juventude integrara a tropa de elite do Reich e, posteriormente, escreveu uma obra em que renega sua antiga ideologia. Marguerite Duras, resistente durante a ocupação de Paris, transformou o massacre dos judeus numa obsessão temática em sua obra. Entre nós, recentemente Michel Laub lançou DIÁRIO DA QUEDA, no qual questiona o que é ser judeu hoje, no século XXI.

Malala e Satyartir mereceram o prêmio por uma luta humanitária, entendendo que nenhuma criança pode desenvolver suas capacidades se não tiver acesso à educação, portal de entrada para uma consciência do mundo, cada vez mais necessária em tempos de globalização. Modiano e seus pares reivindicam o poder da palavra para nos lembrar que a possibilidade do surgimento de uma nova besta destruidora paira, latente e permanentemente, sobre a espécie humana.

Malala recebeu asilo político na Inglaterra, país que colonizou a Índia e o Paquistão durante mais de um século e negou aos seus cidadãos o direito à informação, à educação e ao pão (remeto o leitor a HOLOCAUSTOS COLONIAIS, de Mike Davis). Modiano é cidadão de um país que ajudou a moldar as bases da democracia, mas que encara os imigrantes de suas ex-colônias como uma escória a ser lançada na lixeira. E Michel Laub escreve do coração da maior e mais rica cidade do Brasil, daquela que tem o maior número de instituições de ensino superior e que é a mais cosmopolita do país, e que assistiu, no último sábado, a uma passeata reivindicando a tomada do poder da presidenta democraticamente eleita e exigindo “GOLPE MILITAR JÁ”! Contra essas formas de barbárie, a escrita e a memória são as armas que nos restam.

Para ler outros textos do Prof. Veronese, acesse blog do CPV, link Dicas Culturais do Verô.

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