Transferência de produção da Apple para a Índia enfrenta obstáculos

Financial Times; A Apple está encontrando obstáculos em seus esforços para aumentar sua produção na Índia, em meio à pressão para reduzir a dependência da China na manufatura de seus produtos.

A fabricante do iPhone tem enviado designers e engenheiros de produtos da Califórnia e da China para fábricas no sul da Índia, a fim de treinar profissionais locais e ajudar a estabelecer a produção, de acordo com quatro pessoas informadas sobre essas operações.

Isso acontece em um momento no qual a Apple tenta abandonar sua dependência de uma cadeia de suprimento centrada na China, depois de meses de desordenamento causado pela Covid-19, o que levou a empresa a anunciar a primeira queda em sua receita trimestral em três anos e meio, no começo deste mês.

A Apple está reforçando suas operações iniciais na Índia, adotando uma estratégia de diversificação que demorou demais a colocar em prática e seguindo o modelo que estabeleceu na China duas décadas atrás, com o envio de engenheiros e designers que frequentemente passam temporadas de semanas ou meses em fábricas locais para supervisionar a produção.

Embora a Apple produza modelos simples do iPhone na Índia desde 2017, setembro de 2022 foi um mês significativo, com o início da produção dos modelos principais da empresa na Índia apenas algumas semanas depois de eles terem começado a ser fabricados na China, onde praticamente todos os iPhones e outros hardwares da Apple são montados.

Mas a experiência da empresa nos últimos meses demonstra a escala do trabalho que precisa ser feito no país.

De acordo com uma pessoa informada sobre assunto, em uma fábrica de carcaças para celulares em Hosur, administrada pelo conglomerado indiano Tata, um dos fornecedores da Apple, apenas cerca de metade dos componentes produzidos satisfazem os critérios de qualidade que permitem seu envio peça à Foxconn —parceira de montagem da Apple na produção de iPhones.

Esse “rendimento” de 50% é muito insatisfatório diante da meta de defeito zero adotada pela Apple. Duas pessoas que trabalharam nas operações offshore da companhia dizem que a fábrica está implementando um plano para ganhar eficiência, mas o caminho é longo.

Jue Wang, da consultoria Bain, disse que a Apple está no início de sua expansão para a Índia. “Não estamos falando de uma escala parecida com a da fábrica de Zhengzhou” –um polo fabril na China conhecido como “Cidade do iPhone”, que emprega cerca de 300 mil trabalhadores– “e todos reconhecem que haverá diferenças de eficiência, mas a mudança vai acontecer”, ela disse.

Na China, fornecedores e funcionários do governo adotaram uma abordagem de “fazer qualquer coisa que seja necessária” para conquistar encomendas de iPhones. Antigos funcionários da Apple descrevem casos em que sua estimativa de prazo para uma determinada tarefa seria de diversas semanas, mas que encontraram o trabalho concluído já na manhã seguinte, com uma velocidade inexplicável.

As operações na Índia não estão acontecendo nesse ritmo, disse um antigo engenheiro da Apple que conhece bem o assunto. “Simplesmente não existe um senso de urgência”.

Uma pessoa envolvida nas operações da Apple disse que o processo de expansão para a Índia é lento em parte devido à logística, tarifas e infraestrutura. Essa pessoa disse que a diversificação da Apple para o Sudeste Asiático vem sendo mais simples graças à Regional Comprehensive Economic Partnership, um tratado de livre comércio que envolve dez países da região.

Mark Zetter, presidente da Venture Outsource, uma consultoria que atende aos fabricantes terceirizados de eletrônicos, disse que essa inércia vem sendo problema há anos.

Há cinco anos, quando Zetter conduziu estudos para o instituto de pesquisa indiano Gateway House, ele constatou os fabricantes terceirizados “frequentemente afirmavam que eram capazes de atender a qualquer necessidade” de um cliente de eletrônica. Mas na realidade eles eram “lentos em responder às preocupações dos clientes após a assinatura do contrato”, e lhes “faltava flexibilidade” para atender a pedidos de mudanças.

Os engenheiros da Apple também foram, em diversas ocasiões, hospedados em hotéis que ficam no centro de Chennai, a capital do estado de Tamil Nadu, a duas horas de distância das fábricas onde fazem seu trabalho. Isso requer quatro horas de deslocamento diário, e as conexões wi-fi ao longo do percurso são muitas vezes deficientes.

A Apple se recusou a comentar.

Apesar desses problemas iniciais, analistas dizem que o potencial da Índia para a Apple é enorme. A Bain, uma consultoria internacional, estima que as exportações de serviços de produção da Índia podem mais do que dobrar, de US$ 418 bilhões em 2022 para mais de US$ 1 trilhão em 2028, impulsionadas pelo apoio político e pelos custos baixos. A empresa estima que as exportações de eletrônicos, sozinhas, crescerão em ritmo anual de até 40%.

Vivek Wadhwa, um empresário e acadêmico radicado no Vale do Silício que no mês passado se reuniu com autoridades indianas, entre as quais o primeiro-ministro Narendra Modi, disse que o governo central do país está encorajando empresas a tirar partido da necessidade da Apple de diversificar suas atividades para fora da China.

Os governos dos estados indianos “estão fazendo tudo que podem para atrair a indústria, e farão o que a China fez”, ele disse. “Mas as coisas começam aos poucos. A Apple só agora está conhecendo o terreno, e descobrindo o que funciona e o que não funciona… Em três anos, vocês verão a escala crescer”.

Wadhwa reconheceu que o governo fragmentado e burocrático da Índia era algo a que a Apple teria de se adaptar. Ele sugeriu aos engenheiros da empresa que aprendessem a arte do “jugaad” – um jeito de se virar, de superar obstáculos. “Porque na Índia tudo é um obstáculo”, ele disse.

Os anúncios de emprego recentes da Apple na Índia deixam claro que a empresa tem grandes ambições no país, que está a caminho de ultrapassar a China como nação mais populosa do mundo este ano.

Um anúncio informa aos potenciais contratados que eles “transformarão as operações nascentes na Índia a fim de servir a todas as linhas de produtos da Apple, e ao mesmo tempo construirão a fábrica do futuro”.

A palavra “Índia” também foi mencionada 15 vezes na conversa entre executivos da Apple e analistas durante o anúncio de resultados da empresa no começo deste mês, e o presidente-executivo Tim Cook se declarou “muito otimista quanto à Índia”. Ele definiu o mercado do país como “altamente empolgante”, e como “um grande foco”, e confirmou planos de abrir em breve as primeiras Apple Stores no país.

O grupo Tata tem planos ambiciosos para se tornar um fornecedor de serviço completo para a Apple, como os taiwaneses, e tem a aprovação e o apoio do governo indiano, de acordo com pessoas informadas sobre seus planos na Índia.

O conglomerado indiano está negociando com a Wistron, uma rival taiwanesa da Foxconn que está interessada em sair da Índia depois de experimentar agitação trabalhista e protestos em 2020, a compra de uma fábrica que monta produtos da Apple em um subúrbio de Bangalore, em Karnataka, um estado vizinho.

Uma pessoa informada sobre os planos disse que a Apple estava facilitando discussões que permitiriam que a Tata assumisse controle majoritário, em lugar de adotar uma estrutura de joint venture 50:50. A agência de notícias Bloomberg foi a primeira a noticiar as negociações. O Tata se recusou a comentar sobre seus planos. A Wistron não respondeu a um pedido de comentários.

Enquanto isso, o governo indiano deu luz verde preliminar aos fornecedores de componentes chineses da Apple para que comecem a operar em joint ventures com parceiros indianos, de acordo com uma pessoa informada sobre os planos.

A decisão é significativa, já que governo indiano tem uma disputa de fronteiras latente com a China, proibiu dezenas de apps chineses e abriu processos judiciais e tomou outras medidas punitivas contra fabricantes de celulares do país vizinho, depois de um confronto em sua fronteira norte em 2020, que deixou pelo menos 24 mortos.

No início deste mês, Nirmala Sitharaman, a ministra das Finanças indiana, afirmou que a Índia planejava reduzir as tarifas sobre a importação de alguns componentes e insumos utilizados na produção de celulares, em uma tentativa de “defender o valor adicionado nacional na fabricação de celulares”.

Um executivo do setor de eletrônica em Tamil Nadu disse que a Apple chegou atrasada ao jogo. “Eles deveriam ter iniciado esse exercício há cinco anos”, disse. “Deveriam ter começado a diversificação mais cedo, para que neste momento pudessem colher os benefícios”

https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2023/03/transferencia-de-producao-da-apple-para-a-india-enfrenta-obstaculos.shtml

Comentários estão desabilitados para essa publicação