Vinte e cinco anos atrás, este repórter contratava um serviço de telefonia celular no Congo. Cada dia de uso custava o equivalente ao que um cidadão local ganhava em vários meses. O aparelho era pesado como um tijolo e pouco útil. Praticamente ninguém no Congo tinha um, exceto por ministros do gabinete de governo ou magnatas, então não havia muita gente para ligar. Naqueles dias, telefones móveis não tinham surtido nenhuma diferença detectável na vida de quase ninguém nos países mais pobres do mundo.
Hoje, muitos agricultores têm celulares: o número de conexões cresceu 5 mil vezes enquanto a população dobrou. Dispositivos móveis transformaram vidas em todo o mundo em desenvolvimento, especialmente à medida que cada vez mais de seus habitantes se conectam à internet. As 4 bilhões de pessoas que vivem em países de renda baixa ou média-baixa têm vastamente mais acesso a informação, conversam por chat diariamente com amigos em lugares distantes e usam seus telefones como cartões bancários mesmo quando não têm contas em bancos.
A inteligência artificial (IA) será capaz de ocasionar mudanças similarmente dramáticas? Há três razões principais para otimismo. Primeiro, a tecnologia está melhorando rapidamente. Segundo, também tem potencial de se disseminar rapidamente. Como costuma ocorrer com tecnologias novas, os países ricos se beneficiarão primeiro. Mas se o alto custo de treinar modelos de IA cair, o gasto para fornecer a tecnologia para os pobres poderia ser mínimo. Eles não precisarão de um dispositivo novo, apenas dos smartphones que muitos já possuem.
A terceira razão é que países em desenvolvimento têm escassez estarrecedora de trabalhadores qualificados: nem de perto há professores, médicos, engenheiros ou administradores o suficiente. A inteligência artificial poderia aliviar essa falta não substituindo os trabalhadores existentes, mas ajudando-os a tornar-se mais produtivos, argumenta Daniel Björkegren, da Universidade Columbia, o que, por sua vez, pode fazer aumentar os níveis gerais de saúde e educação. Apesar da IA também poder eliminar alguns empregos, o FMI prevê que os mercados de trabalho em países mais pobres serão menos perturbados que os ricos. Outra possibilidade tentadora é que a IA possa ajudar a fornecer dados detalhados e em tempo real sobre lugares pobres e assim colaborar em todas as maneiras de desenvolvimento do trabalho.
Comecemos com a educação. Um aluno subsaariano típico passa seis anos na escola, mas retém apenas o equivalente a três anos de aprendizado, estimou em 2015 Wolfgang Lutz, do Centro Wittgenstein, em Viena. Um estudante japonês passa 14 anos na escola e absorve o equivalente a 16 anos de educação. Usando uma metodologia diferente, o Banco Mundial também constata que a educação é espetacularmente pior em países pobres em comparação com os ricos.
O empreendedor queniano Tonee Ndungu crê que a inteligência artificial pode ajudar a suprir esse lapso. Ele desenvolveu aplicativos que espera lançar este ano. Um deles, chamado Somanasi (“Aprenda comigo”), é feito para crianças, permite a estudantes questionar um chatbot falante a respeito de temas relacionados ao currículo escolar queniano. The Economist perguntou, “Como tirar uma porcentagem de uma fração?”, o chatbot ofereceu um exemplo trabalhado passo a passo.
Aprendizado de máquina
Um chatbot é capaz de dar atenção exclusiva para cada criança, a qualquer hora do dia, e nunca fica cansado (contanto que a bateria do seu telefone esteja carregada). E também pode ser adaptado para culturas locais. “Eu só vi um açaí com 30 anos”, afirma Ndungu. “Então nós dizemos que ‘A é de animal’.” O serviço também pode ser adaptado para diferentes estilos de aprendizado. Pode ilustrar uma divisão dizendo para as crianças quebrarem um lápis pela metade e repetir a tarefa. Dependendo das diferentes maneiras que os alunos respondem, a inteligência artificial é capaz de constatar se sua abordagem está ou não funcionando e afinar precisamente a maneira que interage com eles. Algumas crianças querem mais números; outras gostam de histórias. O chatbot se adapta.
Ele ainda não é capaz de corrigir lição de casa. Mas a Kytabu, a empresa de Ndungu, também oferece um aplicativo para professores chamado Hodari (“Valente”) que alivia a carga de trabalho elaborando planos de aulas passo a passo. O aplicativo ajuda os professores a acompanhar o que os alunos entendem fazendo cada um deles responder perguntas em um smartphone. Um telefone por sala de aula é suficiente, afirma ele.
Até onde The Economist pôde perceber ao mexer nos aplicativos em um café com boa rede Wi-Fi, ambos funcionam bem. Mas a comprovação virá — e os bugs serão reparados — quando mais pessoas os usarem em salas de aulas e lares. No começo eles serão distribuídos gratuitamente; Ndungu espera eventualmente cobrar por extensões. Quanto mais crianças se registrarem, mais barato será fornecer o serviço. Se meio milhão assinarem, Ndungu prevê que o custo por criança cairia de U$ 3,50 ao mês (fora o telefone) para cerca de US$ 0,15.
Boas notas
Muitos empreendedores perseguem projetos similares, com frequência usando modelos de código aberto desenvolvidos em países ricos e às vezes com ajuda de entidades sem fins lucrativos como a Fundação Gates. O custo de fazer a inteligência artificial aprender novas línguas parece baixo. A IA já é usada para escrever livros infantis em línguas anteriormente obscuras demais para chamar a atenção das editoras comerciais.
A necessidade é gritante. Países em desenvolvimento têm pouquíssimos professores, muitos sem mestrado no currículo. Um estudo de 2015 (usando dados de até 2007) constatou que quatro quintos dos professores de matemática do 6.º ano na América do Sul não entendiam os conceitos que deveriam lecionar. Cerca de 90% das crianças de 10 anos na África Subsaariana não conseguem ler um texto simples.
Björkegren aponta para estudos recentes sugerindo que grandes ganhos são possíveis mesmo com tecnologias básicas. Um deles analisou uma abordagem segundo a qual escolas contratam professores modestamente qualificados e lhes dão “roteiros” detalhados para as aulas, por meio de tablets. O economista ganhador do Nobel Michael Kremer e outros pesquisadores estudaram 10 mil alunos escolarizados dessa maneira no Quênia, em instituições de ensino administradas pela Bridge International Academies, uma cadeia de escolas privadas que oferece educação a preços baixos. Eles constataram que, depois de em média dois anos, os alunos da Bridge tinham se graduado em quase um ano extra de currículo em comparação com os estudantes das escolas normais. Outro estudo, realizado na Índia, constatou que instrução personalizada e computadorizada é especialmente útil para alunos muito atrasados.
Aplicações na saúde
Usar inteligência artificial em assistência de saúde é mais arriscado. Se um chatbot educacional erra, um aluno pode ir mal em uma prova; se um chatbot médico alucina, um paciente pode morrer. Não obstante, os otimistas veem grande potencial. Alguns kits médicos dotados de IA já são usados amplamente em países ricos e começam a ser aplicados em lugares mais pobres. Exemplos incluem dispositivos de ultrassom capazes de interpretar escaneamentos e um sistema de detecção de tuberculose em raios-x de tórax. Traduções precisas realizadas por IA também podem facilitar que pacientes e trabalhadores da área da saúde no sul global explorem o conhecimento médico mundial.
Mesmo ferramentas imperfeitas de inteligência artificial melhoram sistemas de assistência de saúde no mundo em desenvolvimento, cujas falhas causam mais de 8 milhões de mortes anualmente, segundo uma estimativa. Em um estudo que envolveu nove países pobres e de renda média conduzido por Todd Lewis, de Harvard, e outros pesquisadores, 2 mil trabalhadores recém-graduados de atenção primária à saúde foram observados lidando com pacientes de clínicas. Eles realizaram tarefas corretas e essenciais exigidas por diretrizes clínicas em apenas 50% dos atendimentos.
Para habitantes de regiões remotas, mesmo uma clínica abaixo dos padrões pode ser distante ou cara demais. Muitos apelam para medicinas tradicionais, muitas delas inúteis ou prejudiciais. Curandeiros sul-africanos às vezes fazem incisões em pacientes para esfregar um pó tóxico impregnado de mercúrio, por exemplo. Ferramentas de inteligência artificial não precisam ser infalíveis para ser melhores que isso.
Uma equipe da Universidade de São Paulo (USP) está treinando uma inteligência artificial para responder dúvidas médicas. O objetivo é dar uma ferramenta para trabalhadores de atenção primária à saúde no Brasil, que às vezes têm pouco treinamento. Os pesquisadores estão usando uma base de dados de diretrizes cínicas do Ministério da Saúde brasileiro; em vez de toda a internet, que é útil para dicas de curandeirismos vodu. Antes de ser amplamente empregada, a IA tem de ser testada, ajustada e testada outra vez. Atualmente, quando fazemos perguntas precisas e técnicas, como, “Ivermectina é eficaz na prevenção de covid-19?”, seu índice de acerto é “muito, muito alto”, afirma Francisco Barbosa, um dos membros da equipe. O problema aparece quando lhe fazemos perguntas vagas, como humanos costumam fazer. Se dizemos, “Eu caí na rua. Como posso chegar a uma farmácia?”, a IA, que pode não saber onde estamos, pode dar conselhos péssimos.
A inteligência artificial terá de melhorar, e seus usuários terão de aprender como utilizá-la da melhor maneira, afirma Barbosa. Ele está confiante do que ocorrerá: “É clichê (dizer isto), mas a IA está mudando tudo”. Equipar um novo hospital custa milhões de dólares. Treinar um novo médico leva anos. Se a IA ajudar trabalhadores de assistência primária à saúde remunerados com salários baixos a tratar pacientes com sucesso, permitindo-os prescindir da necessidade de ir a um hospital, o Brasil poderá manter sua população mais saudável sem gastar mais.
O Brasil tem um médico para cada 467 habitantes; o Quênia tem um para cada 4.425. A inteligência artificial poderia ajudar, afirma Daphne Ngunjiri, da Access Afya, uma empresa queniana que opera a plataforma virtual de assistência de saúde mDaktari, com 29 mil clientes. Por uma pequena mensalidade, os usuários podem pedir aconselhamento quando não se sentem bem.
Manipulando a máquina
A mDaktari adicionou um chatbot dotado de inteligência artificial ao sistema para um grupo de teste com 380 usuários. Ele registra suas demandas, processa os prompts para levantar mais informação e apresenta essa informação, juntamente com uma resposta sugerida, para um profissional de saúde, com frequência um enfermeiro. O profissional lê o material e, se o conselho for válido, o aprova e devolve para o cliente, com frequência encaminhando-o para uma farmácia ou uma clínica. Há, portanto, um humano no ciclo para vigiar e evitar erros, mas a inteligência artificial faz o trabalho que consome tempo reunindo informações a respeito de sintomas, o que possibilita ao enfermeiro lidar com mais pacientes. Se necessário, o enfermeiro pode telefonar para o paciente. Para relatar problemas de saúde constrangedores, como doenças sexualmente transmissíveis, alguns pacientes preferem conversar com um chatbot — que nunca os julga.
Virginia, uma cliente moradora de uma favela de Nairóbi, cuja família subsiste com trabalhos informais e uma horta no quintal, afirma que a mDaktari é simples e útil. Um dia ela se sentiu mal, consultou o aplicativo e foi orientada a tomar medicamentos que acabaram com a infecção no trato urinário que acabou detectada. “Eu posso até entrar em contato (com um enfermeiro) pelo meu telefone e conseguir (uma) resposta”, afirma ela.
Várias empresas estão testando dispositivos dotados de inteligência artificial para observar como os equipamentos funcionam em regiões pobres. A Philips, uma empresa holandesa, tem um programa-piloto no Quênia para um ultrassom portátil equipado com uma IA capaz de interpretar as imagens produzidas pelo dispositivo. Isso ajuda a solucionar um problema comum: muitas mulheres grávidas e especialistas em leitura de escâneres insuficientes.
Sadiki Jira trabalha como parteiro em um posto de saúde no Quênia que serve a aproximadamente 30 mil pessoas mas não conta com nenhum médico. Ele relatou o caso de uma paciente grávida cujo bebê tinha morrido dentro do útero, dois anos atrás. A mulher não percebeu nada de errado por várias semanas e só buscou ajuda quando começou a sangrar. Jira a encaminhou para um hospital, mas era tarde demais: ela morreu.
Jira usa agora um escâner dotado de inteligência artificial. Qualquer parteiro consegue, com treinamento mínimo, esfregar o dispositivo Philips na barriga de uma mulher grávida. A IA revela informações vitais, como a idade gestacional do feto, se ele está em apresentação pélvica e se a quantidade de líquido amniótico é adequada. “É fácil de usar”, afirma Jira.
A Philips planeja oferecer o dispositivo com inteligência artificial por US$ 1 ou US$ 2 ao dia em países pobres. Os maiores obstáculos para sua distribuição são regulatórios, afirma Matthijs Wassink, da Philips. Governos permitirão que doulas manipulem um processo que anteriormente exigia profissionais mais qualificados? O que acontecerá em lugares como a Índia, onde as regulações são especialmente rígidas em razão do temor de que as pessoas usem aparelhos de ultrassom para identificar fetos femininos e abortar?
O problema dos dados
Lugares mais pobres coletam menos dados. Quarenta e nove países estão há mais de 15 anos sem realizar censos rurais; 13 não realizaram censos genéricos nesse período. Números oficiais, quando existem, tendem a ser elogiosos a governos. Por exemplo, um estudo comparou estimativas oficiais a respeito de quanto milho estava sendo cultivado em pequenas fazendas na Etiópia, em Malawi e na Nigéria com resultados de pesquisas meticulosas (mas raras) nos lares. Os números oficiais eram muito mais rosáceos.
Imagens de satélite e aprendizado de máquina poderiam melhorar a qualidade e a pontualidade de dados nos países em desenvolvimento, argumentam Marshall Burke, da Universidade Stanford, e seus coautores de um artigo recente na revista Science. Cerca de 2,5 bilhões de pessoas vivem em lares que dependem de pequenas parcelas de terra. Até recentemente, era difícil medir a produção dessas propriedades: fotos de satélite não tinham definição suficiente e os dados eram difíceis de interpretar. Mas colocando inteligência artificial para trabalhar sobre novas imagens de vegetação, de alta resolução, Burke e David Lobell, também de Stanford, conseguiram mensurar rendimentos de safras tão precisamente quanto as pesquisas, mas com mais rapidez e menos custos. Isso poderia permitir análises frequentes e detalhadas de práticas agrícolas. Quanto fertilizante é necessário naquela colina? Que sementes funcionam melhor naquele vale? Esse tipo de conhecimento seria capaz de transformar modos de vida rurais, preveem os autores.
Da mesma forma que previsões meteorológicas melhores. A empresa americana Atmo afirma que suas previsões do tempo com uso de inteligência artificial são até 100 vezes mais detalhadas e 2 vezes mais acuradas que os boletins meteorológicos convencionais, porque a IA processa dados muito mais rapidamente. E isso também é barato. “Um segredo sujo da meteorologia (…) é que existem desigualdades imensas”, afirmou o diretor da Atmo, Alex Levy. Os boletins são menos detalhados e menos confiáveis em países pobres. “Os lugares (com) clima mais extremo também têm as piores previsões, (portanto) é mais provável eles serem pegos de surpresa e não conseguirem se preparar adequadamente.” O serviço da Atmo está sendo usado em Uganda e logo poderá ser aplicado nas Filipinas.
Censos são raridade em países pobres porque custam caro e tendem a ser manipulados. Na Nigéria, o dinheiro que cada Estado recebe do governo central é ligado à sua população — o que incentiva os Estados à fraude. Em 1991, em um formulário de censo com espaço para até nove moradores em cada residência, alguns Estados relataram exatamente nove em todos. Quando os resultados do censo de 2006 foram publicados, o governador de Lagos, Bola Tinubu, declarou furiosamente que sua população era o dobro da contagem oficial. A Nigéria não teve nenhum outro censo desde então. O novo presidente — por acaso, o próprio Tinubu — promete realizar um em 2024.
A inteligência artificial é capaz de gerar estimativas mais frequentes e mais detalhadas a respeito de quantas pessoas vivem em cada lugar — assim como sobre sua condição econômica. Luzes acesas à noite com frequência são usadas como referência de atividade econômica. Neal Jean, de Stanford, e outros pesquisadores tiraram fotos de dia e de noite de favelas na África e treinaram uma rede neural convolucional (uma forma de aprendizagem de máquina) para prever, a partir de imagens feitas durante o dia, quanta luz haveria durante a noite. Em outras palavras, a IA aprendeu a reconhecer quais edifícios, infraestruturas e outros indicadores tendem a apontar para atividade econômica. Ela foi capaz de prever 55-75% da variação de recursos entre os lares.
Esse tipo de informação poderia ajudar governos e entidades de caridade a avaliar melhor efeitos de esforços de ajuda a necessitados; poderia também ajudar empresas a entender mercados. Pesquisadores estão testando avidamente essas técnicas, mas os governos parecem lentos em adotá-las, lamenta Burke. Ele atribui isso em parte “aos potenciais benefícios para alguns formuladores de políticas de não ter determinados resultados mensurados”.
A inteligência artificial também poderia ajudar as pessoas a lidar com a burocracia que sufoca a produtividade em tantos países pobres. Registrar uma propriedade leva 200 vezes mais tempo no Haiti do que no rico Catar, de acordo com o Banco Mundial. E se a IA, que é imune ao tédio, fosse capaz de preencher formulários acuradamente o suficiente para poupar os humanos da tarefa? Em setembro, a Índia lançou um chatbot que permite a agricultores analfabetos tirar dúvidas oralmente a respeito de formulários para obtenção de ajuda econômica. Cerca de 500 mil testaram o sistema no primeiro dia.