Perto de completar três décadas no ar, a rede de canais Telecine está em meio a um dos maiores processos de transformação desde sua criação, em 1991: ir de uma programadora de TV paga para um serviço de streaming, com acesso via internet. Há duas semanas, a companhia alterou sua identidade visual para marcar a mudança, iniciada há dois anos e intensificada nos últimos meses. As ações incluem investimentos na criação de tecnologias para se aproximar do consumidor e a adoção de modelos comerciais mais adaptados ao público da era digital, que escolhe o que ver, em que horário e em qual dispositivo.
“O desafio é continuar a atender o espectador que se acostumou a acompanhar a programação linear dos canais e, ao mesmo tempo, atrair o público novo do streaming, em especial o [cliente] ‘mobile’, que vê filmes pelo celular”, diz Eldes Mattiuzzo, diretor-geral do Telecine.
Especializado em filmes, o Telecine é uma joint venture entre o Grupo Globo, que publica o Valor, e quatro produtoras de cinema: Fox, MGM, Paramount e Universal. O grupo brasileiro detém 50% de participação. A outra metade é dos estúdios americanos.
Desde dezembro, o espectador pode assinar os serviços diretamente com o Telecine, sem intermediação da operadora de TV paga, como sempre ocorrera até então. A assinatura dá direito a acesso simultâneo em até cinco dispositivos e custa R$ 37,90 por mês, mesmo valor cobrado pelas empresas de TV por assinatura, diz Mattiuzzo. “Não queremos competir pelo cliente [com a TV paga]. A ideia é trazer um universo novo [de público]. É somar e não canibalizar.”
As próprias operadoras estão modificando suas políticas comerciais, observa o executivo. Muitas passaram a oferecer os canais Telecine em adição a pacotes básicos de canais, que não pesam tanto no bolso do consumidor. Antes, a prática era condicionar essa compra a pacotes mais caros.
Com as mudanças, os serviços existentes como Telecine On Demand e Telecine Play passaram a ser todos identificados apenas como Telecine, a marca principal.
Atualmente, a empresa reúne cerca de 1,4 milhão de usuários de streaming, incluindo assinantes que acessam o serviço gratuitamente porque já pagam pelo pacote de TV por assinatura. Cerca de 30% dos assinantes do Telecine na TV paga também usam o streaming, informa a companhia.
Para se aproximar do usuário, o Telecine está desenvolvendo um algoritmo de recomendação de conteúdo, baseado em aprendizado de máquina, uma das disciplinas da inteligência artificial. À medida que observa os hábitos do assinante, o algoritmo aprende a segmentar o público e a agrupar os espectadores de acordo com suas escolhas. A expectativa é que o sistema, que já funciona de maneira incipiente, permita um grau muito maior de personalização pelo usuário. “[O sistema] ainda é um bebezinho, mas tem enorme potencial”, afirma Mattiuzzo.
O Telecine acompanha com atenção a tendência dos comandos de voz. Em três anos, prevê o executivo, essas tecnologias serão padrão no mercado, substituindo de maneira crescente teclados e outros meios de acesso. “É o que já fazem crianças de três ou quatro anos quando querem ver vídeos no YouTube”, diz Mattiuzzo.
A reorientação do Telecine é reflexo das mudanças de comportamento do público e da entrada de novos concorrentes no mercado de entretenimento, principalmente grupos de tecnologia como Netflix e Amazon. A Apple também já anunciou sua intenção de entrar na disputa ainda este ano, com o Apple TV Plus.
A ofensiva das empresas de tecnologia tem levado os grupos de mídia a investir no streaming, incluindo outras redes de TV paga. Dias atrás, a HBO anunciou que os usuários latino-americanos do HBO Go, seu serviço via internet, poderão fazer o download de filmes e séries para vê-los quando não estão conectados à internet.
O movimento mais esperado no setor é o da Disney, maior empresa de entretenimento do mundo. A companhia planeja lançar neste ano o Disney+, no qual vai exibir produções muito populares, como a série de cinema “Star Wars” e as produções – antigas e novas – da Marvel.
Nessa briga, formar acervo é essencial. No Telecine estão disponíveis 2 mil títulos. Além dos filmes dos quatro estúdios que participam da joint venture, a companhia também compra obras de outras produtoras. “Já temos negociados os direitos de filmes que serão lançados em 2022 e ainda nem começaram a ser filmados”, diz Mattiuzzo.
“Blockbusters”, como são chamados os filmes de grande audiência, ajudam a atrair assinantes, mas não a mantê-los, afirma o executivo. A pessoa faz a assinatura e depois a cancela. “Para engajar o usuário é preciso manter a qualidade de todo o acervo”, diz. Em média, os usuários do Telecine assistem a quatro horas por semana, o equivalente a dois longas- metragens. “É um tempo muito bom”.
A estratégia do Telecine é manter-se concentrado em filmes. Não há planos para passar a exibir séries ou outros programas, como faz a maioria dos serviços de streaming. Em julho, segundo a empresa, os canais Telecine bateram recorde histórico de audiência. Ao reforçar o papel de referência na área cinematográfica, a expectativa da companhia é ocupar um espaço bem definido em meio a um mercado cada vez mais competitivo.
O assinante brasileiro costumava se mostrar disposto a pagar até R$ 150 por mês em TV por assinatura, mas com a multiplicação dos serviços de streaming e a fragmentação da audiência, esse valor está caindo, diz Mattiuzzo. “Todos concorrem pela mesma carteira [do cliente] e queremos ser um dos vencedores.”
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