Por que mais empresas apostam na economia circular

Alternativa ao modelo de produção, consumo e descarte, conceito prevê a transformação de resíduos em novas matérias-primas na indústria

Reforçada pelas lições que a pandemia da covid-19 impôs a todo o planeta, a pressão por adoção de práticas mais sustentáveis tem colocado em evidência na indústria o conceito de economia circular. Alternativa ao modelo tradicional de produção, consumo e descarte, esse sistema tem como fundamento o melhor uso de recursos naturais para se evitar desperdícios e sobras. Com a adoção da economia circular,as quase 80 milhões de toneladas de resíduos sólidos urbanos gerados no Brasil anualmente poderiam ser transformadas em matéria-prima.

Várias empresas no País já adotam parcialmente ou até integralmente conceitos do modelo. Os dados da geração de lixo são de 2018 e foram elaborados pela Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (Abrelpe) que, na época, estimava que apenas 3% eram de fato reciclados.

“Não existe lixo na economia circular. Todo resíduo é recurso a ser utilizado de alguma forma, seja para empregar novamente na mesma cadeia produtiva ou em outra, na produção de diferentes produtos”, afirma Davi Bomtempo, gerente executivo de Meio Ambiente e Sustentabilidade da Confederação Nacional da Indústria (CNI), que vê a transição como oportunidade de novos negócios.

Com essa filosofia, o engenheiro de materiais Guilherme Brammer criou, em 2011, a Boomera, empresa de pesquisa e desenvolvimento especializada em soluções para resíduos, com o objetivo de evitar que eles sigam para aterros, lixões e para o mar. Hoje a Boomera tem entre seus clientes empresas como Nestlé, Unilever, Boticário, Adidas, Vale e Via Varejo.

Segundo Brammer, ela oferece serviços de pesquisa e desenvolvimento de produtos desenhados para facilitar sua reciclagem, soluções para reciclagem e logística reversa (gestão de pontos de entrega de resíduos e de cooperativas de catadores). A startup tem também uma fábrica de resina feita a partir do plástico reciclado e uma de lonas agrícolas produzidas com essa resina.

A Boomera deve faturar este ano R$ 40 milhões e, com base no crescimento que vem registrando, projeta atingir entre R$ 100 milhões e R$ 120 milhões em 2022. “A economia circular reduz custos, ajuda a desenvolver produtos novos sem abrir mão de rentabilidade e tem muito espaço para crescer”, afirma Brammer. “Segundo estudos, a economia circular vai gerar negócios de mais de € 1 trilhão até 2025 no mundo todo.”

Bomtempo afirma que desde 2014 a CNI tem incentivado empresas a investirem em modelos de negócios que envolvam compartilhamento, reutilização, remanufatura e reciclagem de materiais. Pesquisa feita pela entidade no ano passado, com 1,2 mil associadas, mostrou que 76% delas empregam algum tipo dessa prática, embora 70% não saibam o que é economia circular.

“Existe uma tendência de se comparar a economia circular à reciclagem, mas é muito mais do que isso, é pensar no design do produto antes de produzi-lo para facilitar sua manutenção, a própria remanufatura, até fechar o ciclo, que é a reciclagem”, explica Bomtempo. “É a manutenção dos recursos pelo máximo tempo em suas cadeias produtivas.”

A CNI e várias entidades, assim como o governo brasileiro, participam de negociações entre os países que fazem parte da Organização Internacional de Normalização (ISO, na sigla oficial) para a criação de uma norma internacional de economia circular, pois hoje praticamente cada país tem a sua. “É uma discussão complexa, e imagino que a norma fique pronta só daqui a dois ou três anos”, prevê Bomtempo.

Até lá, a entidade vai trabalhar para que o tema seja uma política pública. Não há dados que indiquem o que a mudança para a economia circular representaria para o Brasil. Na Europa, onde o assunto está mais avançado, calcula-se que a conversão pode gerar renda de cerca de € 320 bilhões até 2025. O continente europeu tem como meta reciclar 65% dos resíduos locais a partir de 2035 e abolir a prática de incinerar lixo até 2040.

DESAFIOS AMBIENTAIS

No fim de outubro, a Climate Ventures vai divulgar estudo sobre negócios e impacto ambiental em que identificou em vários setores da economia, até o momento, 72 desafios ambientais no País e 87 soluções para esses problemas. Boa parte dos dados coletados é voltada à economia circular, informa Daniel Construcci, co-fundador da organização.

A Climate Ventures é uma plataforma de inovação criada em 2018 para acelerar o empreendedorismo voltado à economia regenerativa e de baixo carbono. Hoje tem em sua base 639 startups com esse perfil e várias soluções sustentáveis para os desafios detectados no estudo, feito em parceria com a pipe.social – que também atua na área socioambiental.

No caso do setor industrial, o estudo cita a dificuldade de rastreabilidade do produto, que é saber, por exemplo, de onde vêm, matérias-primas usadas, se a produção prejudica o meio ambiente, se o design facilita o conserto e se é de fácil reciclagem. “Grande parte das soluções passa pela gestão de resíduos, que é o principal da economia circular”, diz Construcci.

Fabricante de produtos de tecnologia para grandes marcas, como a HP, a Flex (antiga Flextronics) criou uma unidade específica para transformar equipamentos sem uso em matéria-prima para novos itens. A Sinctronics tem linhas de desmontagem de produtos que vão de impressoras a celulares. Recebe entre 200 a 300 toneladas por mês do que seria lixo eletrônico e transforma em insumos para equipamentos novos feitos pela própria empresa.

Carlos Ohde, diretor de inovações da Flex, afirma que 95% dos materiais que chegam à empresa são usados lá mesmo na produção de novos equipamentos. “Os 5% restantes vão para geração de energia”, diz. Também é possível juntar peças em condições de uso de vários eletrônicos e remanufaturar o produto, que depois é revendido para funcionários, escolas e cooperativas.

Segundo Luísa Santiago, diretora executiva da Fundação Ellen MacArthur, a economia circular no Brasil passou a figurar com mais força na agenda de grandes empresas, startups, governos municipais e na academia nos últimos cinco anos. “Ainda há muito por fazer; precisamos de mais políticas públicas alinhadas a essa visão e mecanismos de financiamento que apoiem soluções circulares”, diz. Para ela, sobretudo as empresas “já entenderam que para sobreviver e prosperar no longo prazo a transição para uma economia circular é inevitável”.

Entre as ações em andamento, Luísa cita o Compromisso Global por uma Nova Economia do Plástico, lançado em 2018 e que reúne mais de 450 organizações comprometidas com metas para construir uma economia circular para o plástico.

“A visão se baseia em três pilares: eliminar os plásticos dos quais não precisamos, circular todos os plásticos necessários para que se mantenham na economia e fora do meio ambiente, e inovar para que todos os plásticos usados possam ser reutilizados, reciclados ou compostados de maneira segura”, diz Luísa. Entre os signatários estão Natura e Prefeitura de São Paulo.

Somente no ano passado, a Coca-Cola deixou de colocar 1,6 bilhão de garrafas novas no mercado brasileiro ao reutilizar embalagens retornáveis. Neste mês, também vai iniciar as vendas da água mineral Crystal em garrafas feitas 100% de PET reciclado. “Com isso, outras 400 milhões de novas embalagens do produto vão deixar de ser produzidas em um ano”, informa Andréa Mota, diretora de Comunicação Corporativa e Sustentabilidade da companhia.

O interesse crescente entre as empresas para se inserirem na economia circular levou a Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecção (Abit) e o Centro de Tecnologia da Indústria Química e Têxtil – Senai Cetiqt a criarem o Núcleo de Sustentabilidade e Economia Circular (Nusec), voltado a promover cursos, pesquisas e debates sobre o tema e propor soluções para a cadeia produtiva.

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