Músicas criadas por robôs têm até Eurovision próprio

Nos seus primeiros 30 segundos, a canção “Listen to Your Body Choir” é uma melodia pop, com uma voz feminina cantando sobre um piano delicado. Mas depois tudo começa a se fraturar, com samples e beats ariscos combinados a uma letra bizarra, com versos como “os carros vêm equipados com flexões?” e uma voz robótica entrelaçada ao som humano.

“Listen to Your Body Choir” venceu o A.I. Song Contest deste ano e foi produzida pela equipe M.O.G.I.I.7.E.D., um grupo de músicos, pesquisadores e especialistas em inteligência artificial do estado americano da Califórnia.

O grupo instruiu máquinas a continuar a melodia e letra de “Daisy Bell”, canção composta por Henry Dacre em 1892 e a primeira composição a ser cantada usando fala sintetizada por computador, em 1961. O resultado, em “Listen to Your Body Choir”, é uma faixa que soa ao mesmo tempo humana e mecânica.

O A.I. Song Contest, criado no ano passado, usa o formato do Eurovision Song Contest como inspiração, e é uma competição internacional que explora o uso da inteligência artificial na composição.

Depois de uma cerimônia online transmitida em julho de Liège, na Bélgica, um júri presidido pela instrumentista Imogen Heap e formado por acadêmicos, cientistas e compositores elogiou “Listen to Your Body Choir” por seu uso “rico e criativo de inteligência artificial em toda a canção”.

Em uma mensagem aos espectadores da competição, transmitida online, lida por um membro do M.O.G.I.I.7.E.D., a inteligência artificial usada para compor a canção disse que estava “supercontente” por ter sido parte da equipe vencedora.

A competição teve 38 composições inscritas, de indivíduos e equipes de todo o planeta que trabalham no limiar entre a música e a inteligência artificial, seja na produção musical, no campo de ciência de dados, ou em ambos. Eles usam redes neurais de aprendizado profundo —sistemas de computação que imitam as operações de um cérebro humano— para analisar quantidades imensas de dados musicais, identificar padrões e gerar batidas de bateria, sequências de acordes, letras e até vocais.

As canções resultantes incluem um punk enlameado dos Dadabots e um instrumental de dance music eletrônica da equipe Battery-operated, feito por uma máquina alimentada com 13 anos de composições trance ao longo de 17 dias. A letra do sombrio lamento folk sueco do grupo STHLM, que fala de um cachorro morto, foi escrita usando um gerador de texto conhecido por sua capacidade de criar fake news convincentes.

Embora nenhuma das canções deva chegar ao topo das paradas de sucesso, o elenco da competição oferece um vislumbre atraente, absurdamente variado, e com frequência estranho sobre os resultados da colaboração entre seres humanos e inteligência artificial na composição musical e o potencial dessa tecnologia de influenciar ainda mais a indústria da música.

Karen van Dijk, criadora do A.I. Song Contest com a rede pública de televisão VPRO, da Holanda, disse que, já que a inteligência artificial está integrada a muitos aspectos da vida cotidiana, a competição serviria para dar início a diálogos sobre tecnologia e música. Ou, como ela diz, “para conversar sobre o que desejamos, o que não desejamos e como os músicos se sentem a respeito disso”.

Milhões de dólares são investidos pela indústria da música em pesquisas sobre inteligência artificial, tanto por empresas especializadas iniciantes quanto por ramos de gigantes da tecnologia como Google, Sony e Spotify.

A inteligência artificial já influencia profundamente a maneira com a qual descobrimos músicas, ao organizar playlists de streaming baseadas no comportamento do ouvinte, por exemplo, enquanto gravadoras usam algoritmos para estudar as redes sociais e identificar astros em ascensão.

Usar a inteligência artificial para criar música, porém, ainda não se tornou uma atividade frequente, e o concurso também serviu para demonstrar as limitações da tecnologia.

Embora o M.O.G.I.I.7.E.D. tenha afirmado que buscou capturar a “alma” de suas máquinas de inteligência artificial em “Listen to Your Body Choir”, apenas parte dos sons audíveis, e nenhum dos vocais, foram diretamente produzidos pela inteligência artificial.

“Robôs não sabem cantar”, disse Justin Shave, diretor de criação da Uncanny Valley, uma companhia australiana de música e tecnologia que venceu o A.I. Song Contest do ano passado com sua canção pop dançante “Beautiful the World”. “Na verdade, eles podem”, acrescentou, “mas no fim o que se ouve é uma voz robótica que passou mil vezes pelo Auto-Tune”.

Só um punhado das inscrições no A.I. Song Contest eram criações exclusivas de inteligência artificial, que resultam em sons distorcidos e indistintos, como um remix defeituoso ouvido embaixo da água. Na maior parte dos casos, a inteligência artificial —informada por “conjuntos de dados” musicais seletos— apenas propõe componentes para canções, que mais tarde são escolhidos e executados, ou pelo menos refinados, por músicos.

Muitos dos resultados não destoariam de uma playlist contendo canções integralmente produzidas por seres humanos; um exemplo dessa semelhança é “I Feel the Wires”, do grupo Aimcat, que venceu a competição no voto popular.

A inteligência artificial está em seu elemento quando produz uma sequência infinita de ideias, algumas das quais uma pessoa jamais teria considerado. Num documento que acompanhava sua canção na competição, o M.O.G.I.I.7.E.D. descreveu a tecnologia usada em seu trabalho tanto como ferramenta quanto como colaboradora dotada de poder de agência criativo próprio.

A abordagem é o que Shave chama de “o teorema do acidente feliz”. “Você pode alimentar um sistema de inteligência artificial ou de aprendizado por máquina com certas coisas, e aquilo que surge dele estimula a sua criatividade”, disse. “Você diz que nunca teria pensado naquilo, e em seguida começa a trabalhar modificando a ideia.” “Nós estamos trabalhado com, e não contra, a máquina”, completou ele.

Hendrik Vincent Koops, um dos organizadores do A.I. Song Contest e um pesquisador e compositor radicado na Holanda também falou sobre o uso da tecnologia como “gerador de ideias” para seu trabalho. Ainda mais empolgante para ele é a perspectiva de permitir que pessoas com pouca ou nenhuma experiência em composição musical trabalhem com isso, “democratizando” a feitura da música.

“Para algumas de nossas equipes, aquelas foram suas primeiras composições”, disse Koops. “Eles nos disseram que a única maneira de fazer isso era por meio da inteligência artificial.”

A Amper, uma companhia que trabalha com composições por inteligência artificial, já permite que usuários de qualquer nível de habilidade criem rapidamente e adquiram instrumentais não sujeitos a royalties, como uma espécie de biblioteca de música do século 21. Outro serviço, o Jukebox, criado por uma empresa da qual Elon Musk é um dos fundadores, usou tecnologia para criar múltiplas canções no estilo de artistas como Frank Sinatra, Katy Perry e Elvis Presley. Embora elas sejam confusas e tenham letras sem sentido, elas evocam estranhamente os originais.

Os compositores podem se sentir reconfortados porque nenhuma das pessoas entrevistadas para este artigo disse acreditar que a inteligência artificial viesse a replicar totalmente, quanto mais substituir, seu trabalho. Em vez disso, o futuro da tecnologia na música está nas mãos dos seres humanos, eles disseram, mas agora como um instrumento tão revolucionário quanto a guitarra elétrica, o sintetizador ou o sampler se tornaram no passado.

Determinar se a inteligência artificial tem a capacidade de refletir as complexas emoções humanas que têm posição central nas boas composições é assunto muito diferente.

Uma das composições que mais se destacou, na opinião de Rujing Huang, etnomusicólogo e membro do júri do A.I. Song Contest, foi inscrita pela equipe sul-coreana H:Ai:N, cuja faixa foi batizada com o nome de uma emoção melancólica associada à história da península coreana. Treinada com influências tão diversas quanto poesia antiga e k-pop, a inteligência artificial ajudou a equipe a criar uma canção cuja intenção era fazer com que os ouvintes escutassem e compreendessem um sentimento.

“Se ouço o sentimento?”, perguntou Huang. “Creio que sim. O que é muito interessante. Você ouve emoções muito reais. Mas isso ao mesmo tempo é bem assustador.”

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2021/08/musicas-criadas-por-robos-tem-ate-eurovision-proprio-mas-vocais-sao-limitados.shtml

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