Inteligência artificial ainda precisa da humana

Há 15 anos, fui a Bangalore, o Vale do Silício da Índia, para fazer um documentário sobre terceirização. Uma de nossas primeiras paradas foi em uma empresa chamada 24/7, cuja principal atividade era responder a chamadas de atendimento ao cliente e vender produtos, como cartões de crédito, para empresas dos EUA, a meio mundo de distância.
O coração da 24/7 era um grande número de jovens operadores, a maioria apenas com diploma de ensino médio, exceto por um pequeno grupo de técnicos que forneciam consultoria de suporte (help desk). Esses jovens indianos falavam o melhor inglês americano, aperfeiçoado por aulas que faziam os atendentes soarem como se fossem do Kansas, e não de Calcutá.
O andar de operações era tão barulhento por causa das centenas de conversas telefônicas simultâneas que a 24/7 instalou uma máquina para abafar o som, mas mesmo assim era possível ouvir algum técnico dizendo: “O quê, senhora? Seu computador está pegando fogo?”
Os fundadores do 24/7 – P.V. Kannan e Shanmugam Nagarajan – me convidaram de novo na semana passada para uma visita. A empresa agora é chamada 7.ai, e seu andar de atendimento é tão silencioso que os operadores são incentivados a ouvir sua própria música. O único ruído é o dos teclados, porque as consultas chegam por mensagens de texto.
Essas perguntas são geralmente respondidas primeiro por um chatbot, ou “agente virtual” (software que simula um ser humano), alimentado por inteligência artificial (IA) e só é entregue a uma pessoa usando inteligência humana (IH) se o agente virtual travar e não puder responder. 
As classes médias nos EUA e na Índia foram constituídas sobre algo chamado trabalho de alta remuneração e qualificação média. Em um mundo orientado pela IA, esses empregos estão sendo extintos. Hoje, há trabalhos muito qualificados, com salários elevados, empregos pouco qualificados e com salários baixos, e um número cada vez menor de vagas entre os dois extremos.
Praticamente todos os operadores humanos da [24]7.ai hoje têm diploma universitário porque precisam ter condições de escrever textos com boa gramática em inglês, compreender a interação entre o agente virtual e a pessoa que está ligando e se comunicar com perícia e empatia quando o agente virtual ficar sem respostas.
Na aula de treinamento que fiz no mês passado, presenciei uma competição entre estagiários para definir quem conseguia entender exatamente quando o agente virtual – que atende por Aiva, sigla em inglês para Assistente Virtual Artificialmente Inteligente – não conseguir mais entender o desejo do cliente.
É nesse ponto crítico que o agente humano não apenas precisa intervir, mas também tem que “registrar” as dúvidas que enganaram o robô e repassá-las aos cientistas de dados da [24]7.ai, que então as transformam em uma camada nova e mais profunda de inteligência artificial que permite que a Aiva responda a essas questões em uma próxima vez. 
Os cientistas de dados que descobrem as atualizações para os agentes virtuais são chamados de “designers de conversação digital”. Já os analistas que ajudam a desenvolver assistentes virtuais que falam com os clientes são designados “designers de voz”.
“É um trabalho legal”, disse-me Santhosh Kumar, designer de conversação de 45 anos, revelado nos call centers do sistema 24/7. “Você precisa projetar o que o agente virtual deve dizer aos clientes.” Tudo se resume a “como fazer um computador falar como um ser humano”. Os bancos querem bots formais; os varejistas preferem coloquialidade.
Contenção. Outro termo que aprendi foi “contenção”. Isso mede até qual profundidade pode ir a conversa com um robô antes que ela tenha de ser transferida para um humano. A “taxa de contenção” de uma empresa é medida pelos atendimentos que ficam somente com a IA. Hoje, a taxa de contenção do [24]7.ai varia de 20% a 50%. A meta é chegar a 80%. À medida que os bots captam mais a intenção de cada cliente, os humanos qualificados são realocados para serviços mais complexos.
Diante das mudanças na 7.ai eu me pergunto o que aconteceu com todos aqueles indianos de ensino médio que conheci há 15 anos. Porque se você não tem as habilidades hoje exigidas – e um diploma além do ensino médio –, provavelmente se transferiu para tarefas que poderão ser robotizadas, por uma Aiva a ser adaptada a tarefas como colher frutas, dirigir um caminhão ou arquivar informações. 
Então, o que um país como a Índia, com tanta mão de obra não qualificada, fará quanto a esse desafio? Ele está chegando. E a salvação pode estar justamente na tecnologia e na inteligência artificial.
A tecnologia, ao mesmo tempo em que toma, também dá. A mais nova rede móvel de alta velocidade da Índia, a Jio, nos últimos dois anos reduziu drasticamente o preço da conectividade de celulares. Isso levou a uma profunda difusão do smartphone, conectando aqueles que ganham apenas alguns dólares por dia e criando um novo e vasto kit de ferramentas para tirá-los da pobreza.
Em Mumbai, por exemplo, me reuni com a Sagar Defense Engineering, de Nikunj Parashar, que usa tecnologia derivada da indústria de defesa para criar uma embarcação simples, conectada a satélites. Os catadores de lixo, os mais pobres entre os pobres daqui, podem ser rapidamente treinados para mirar e coletar as montanhas de lixo que flutuam em rios e lagos indianos – e serem pagos por tonelada.
Eu também estive na LeanAgri, fundada por Siddharth Dialani e Sai Gole. Usou a IA para criar um aplicativo simples com o objetivo de melhorar a produtividade de agricultores indianos de baixa renda. O app cria um “calendário dinâmico” que informa doses de semente, água e fertilizantes com base nas mudanças climáticas. O piloto da LeanAgri está atendendo 3 mil agricultores em três Estados indianos. Alguns deles já triplicaram suas receitas, segundo a companhia.
Portanto, não se apresse em escrever o fim da história da luta entre a inteligência artificial e a humana. Se tudo der certo, essa interação oferecerá não só a oportunidade de indianos mais qualificados subirem na vida, mas também uma chance aos menos favorecidos do país.

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