De pé em sua cozinha em Washington, pela manhã, e bebendo um copo de água levemente saborizada, Ben Bernanke veste um terno cinza, uma camisa de botão, sem gravata e um par de tênis de corrida. Ele parece bem diferente de quando trabalhava no Federal Reserve (Fed, o banco central americano), que ele presidiu por oito anos e durante o que foi – até recentemente – considerado o momento financeiro mais turbulento dos últimos 50 anos.
Mas a pandemia de covid-19 e seu impacto econômico fizeram Bernanke refletir. E escrever. Ele ficou em uma espécie de quarentena voluntária para escrever um livro, o “21st Century Monetary Policy: The Federal Reserve From the Great Inflation to covid-19” (Política monetária do século 21: o Federal Reserve da grande inflação à covid-19, em tradução livre), lançado em 17 de maio.
Bernanke descreve o livro como “acadêmico”, mas, neste momento fora do comum, talvez seja um livro excepcionalmente prático, já que as pessoas estão tentando entender melhor os poderes do Fed e do Congresso para estimular ou desacelerar nossa economia em meio a uma crise na cadeia de suprimentos e uma elevadíssima demanda. O próprio livro é um exemplo das tendências opostas surgindo em nossa economia: “Dados os transtornos na cadeia de suprimentos, este livro levou seis meses para ir do manuscrito final até aparecer na livraria”, disse ele.
Bernanke, que escreveu o livro “quando ficou evidente que não viajaria muito e ficaríamos em casa por um tempo” durante os primeiros dias da pandemia, oferece uma história do Fed – sua tese de doutorado foi sobre o crash da Bolsa de 1929 e suas consequências, o que, segundo ele, proporcionou lições valiosas em relação a como ele respondeu à recessão em 2008.
Seu foco desta vez, no entanto, não está em 2008, mas em como o Fed reagiu a vários cenários econômicos ao longo de mais de um século, ele conduz o leitor pela atuação de diferentes presidentes do Fed, como Alan Greenspan. Os leitores muito provavelmente vão se concentrar na análise de Bernanke da década de 1970, que talvez seja a analogia mais próxima do que está acontecendo na economia de hoje.
Ele espera que Jerome Powell, o atual presidente do Fed, possa ajudar a domar a inflação sem ter que pôr em prática as medidas extremas que o ex-presidente da instituição Paul Volcker implementou na década de 1970 ou levar a economia à recessão.
Mas ele também sugere a possibilidade de os Estados Unidos estarem passando por um período de “estagflação”, uma palavra que, segundo Bernanke, foi inventada na década de 1970.
“Mesmo em um cenário benigno, devemos ter uma economia em desaceleração”, disse ele. “E a inflação ainda está muito alta, mas caindo. Portanto, deve haver um período no próximo ano ou em dois anos em que o crescimento será baixo, o desemprego estará pelo menos um pouco alto e a inflação ainda estará alta. Então você pode chamar isso de estagflação.”
Ele está ciente sobretudo de que a inflação descontrolada pode em breve se tornar uma questão política – possivelmente colocando o Fed na mira do público – de uma forma que nem o desemprego provoca. “A diferença entre a inflação e o desemprego é que a inflação afeta exatamente todo mundo”, disse ele. “O desemprego afeta muito a alguns, mas a maioria das pessoas não reage muito ao desemprego porque não está desempregada. A inflação tem um tipo de amplo impacto social.”
Bernanke parece estar de alguma forma preocupado com a credibilidade do Fed com a opinião pública, principalmente devido à estratégia agressiva que ele adotou em 2008 e que Powell continuou durante a pandemia. “Vi essa conversa imaginária, na minha cabeça, entre Jay Powell e William McChesney Martin, na qual acho que Martin provavelmente teria um AVC ou algo do tipo por causa das diferentes coisas que os presidentes entre eles fizeram”, disse, referindo-se a Martin, presidente do Fed de 1951 a 1970.
No livro, Bernanke discute como ele tentou melhorar a reputação da independência do Fed tornando-o mais transparente, inclusive organizando entrevistas coletivas. “No dia a dia, julgamos a credibilidade das promessas mais pela reputação daqueles que as fazem do que pelas palavras exatas usadas por eles”, afirmou.
“O mesmo princípio se aplica às promessas do banco central. A credibilidade do banco central depende em parte da reputação pessoal e das habilidades de comunicação dos principais formuladores de políticas, mas como os formuladores de políticas não podem limitar de forma irrevogável a si mesmos ou a seus sucessores, a reputação institucional também é importante. Devido a preocupações com a reputação institucional, os formuladores de políticas têm um incentivo para cumprir as promessas, mesmo aquelas feitas por seus antecessores.”
Bernanke deixou o Fed como presidente da instituição em 2014, mas continuou em Washington, onde é pesquisador da Instituição Brookings e consultor sênior da empresa de investimentos Pimco. Ele disse que preferia não ter de tomar as decisões com as quais Powell se depara agora, ou aguentar as horas de audiências no Congresso em que as decisões dele foram questionadas.
Em vez disso, ele prefere pensar na função com um certo afastamento e na possibilidade de pontificar a respeito de questões políticas que costumava evitar.
Questionado se acredita que a dívida do financiamento estudantil deveria ser perdoada, sua pausa característica sumiu: “Seria muito injusto acabar com ela. Muitas das pessoas que têm grandes dívidas estudantis são profissionais que vão ganhar muito dinheiro ao longo da vida. Então, por que os favoreceríamos em detrimento de alguém que não fez faculdade, por exemplo?”.
E quanto ao Fed mudar sua meta de inflação? Mais uma vez sem pausa. “As metas de inflação não devem ser usadas como ferramenta de curto prazo, sabe? Se você aumentar a meta de inflação para 3% para algum propósito de curto prazo, por que não 4%, ou por que não 3,5%; ou por que não criar uma faixa ou algo assim?”
A boa notícia é que Bernanke não está apreensivo com uma crise ao estilo da de 2008. Ele está preocupado com os preços dos imóveis residenciais, dizendo que eles “aumentaram muito, mais ou menos uns 30% nos últimos dois anos”.
“Isso é algo em se precisa ficar de olho”, disse ele, mas, ao contrário de 2008, “as hipotecas que estão sendo concedidas para comprar essas casas costumam ser de qualidade muito superior às hipotecas subprime de 15 anos atrás”.
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